PAUSE 91 | Falar com vacas e outras delícias
Um depoimento sobre sair da cacofonia urbana e cair numa auto-observação agridoce sobre si mesma
Eu quero falar das delícias agridoces, impopulares, raramente apreciadas no mar dopaminérgico de prazeres imediatos e imediatistas a que estamos submetidos.
Trocando em miúdos, quero falar sobre sair da cidade e se ver imensamente feliz conversando com vacas, tucanos, árvores, estrelas.
Venho trazer um banquete de delícias que precisam de maturação - maturação mental, a maturidade - para serem apreciadas.
Via de regra, são sensações e ideias que se dão melhor fora do entorno caótico que inunda o nosso cérebro de estímulos e turva a visão para as nuances da vida.
Prazeres anacrônicos, paradoxais, mais abundantes em ambientes calmos, à prova de modismos.
Têm uma capa atemporal, que encobre as pequenezas da condição humana que costumamos deixar enterradas para não nos desviar do dia a dia.
Sim, as delícias agridoces são libertadoras, nos tiram as amarras que combinam com a vida urbana, laboral, superficial, prática. Mas por isso são também libertinas, perigosas.
Apresentam-se sem pedir licença para esmagar o ego e podem nos arremessar nos quintos dos infernos, onde não se sabe se faz só frio, só calor ou se é difícil mesmo porque o clima é tediosamente morno.
Sei lá, o inferno é de cada um; que as delícias mais "agri" ou mais doces sejam correspondentes.
As minhas vêm da autopercepção que, amadurecida, se transmutou de autocrítica juvenil para autoanálise sarcástica. Eu me deleito com essas sensações, o inferno no qual me jogam é um pouco céu.
Falo da antidelícia de se saber patética.
Do prazer às avessas de se reconhecer infantil, boba.
De se olhar no espelho e se saber parcialmente insana.
De rir de si mesma.
De sentir uma condescendente vergonha de si.
De se perceber, ao fim e ao cabo, insignificante.
Não é só bom nem só ruim, mas um misto complexo de sensações e pensamentos que torna a vida mais interessante, embora menos solene. Paradoxos incorporados à vida sem titubear não cabem muito nessa sociedade de polos e tão pouco ciente de quão infantilizada se tornou.
Acho que acessar essa metalinguagem de bufão requer um desencaixe, um afastamento da manada mesmo.
Como se você se afastasse e observasse o entorno com uma teleobjetiva nas mãos. Mas sem jamais se gabar, fazer disso um tipo de poder ou de empáfia, permitisse a si mesmo guardá-la propositadamente para se entregar à crueza, ao olho nu, à contemplação da pequeneza (e da grandeza) da própria existência.
E aí, em meio a essa observação descompromissada, um belo dia (re)descobrisse que as dicotomias mundanas não explicam nada, nem a própria individualidade. Que talvez essa mesma seja falaciosa. Entendesse que seus olhos ainda não vêem tudo. E aí passasse a tentar, na contramão da ideia da supercâmera anterior, usar um microscópio.
Ali, vendo novos micromundos se cruzarem, você teria uma catarse. Aflorariam o encanto, o escárnio, o riso, o choro, a luz, a sombra… Você entenderia como tudo é minúsculo e enorme, num mesmo instante. Você tiraria, enfim, em peso dos ombros porque você entenderia que é uma confusão em forma de gente. Mas é só mais uma.
Parece, eu sei. Mas não usei drogas para pensar tudo isso. Fiquei, ao contrário, muito sóbria, silenciosa, calma, risonha, ouvindo barulho das águas no “quintal” de onde estava, no sul de Minas. E ri do caos que sou e que tudo é.
Não sei para você, mas as delícias agridoces, como as chamo aqui, são aquelas com as quais me deleito quando me afasto do dia a dia de obrigações, viajo para algum lugar sem gente, esqueço que tenho calçados, não me interesso por nada fora do meu alcance.
Reencontrei-me com esses prazeres em dias desconectada, dormindo com portas e janelas abertas, deixando o vento frio da montanha me obrigar, naturalmente, a procurar coberta. Acordando com luz natural, dormindo com a falta dela - redescobrir o ciclo circadiano é um dos patéticos despertares do humano urbanóide.
Lá, fiquei deitada ao relento vendo as incontáveis estrelas, essas que São Paulo esconde da gente. Lembrei que, pequeninha, eu procurava toda noite as Três Marias no céu. Se elas estivessem lá, então o mundo estava em ordem. Naquelas noites, procurei o trio rapidinho e disse: ah, então está tudo bem agora, mas isso bem que explica meus últimos anos em SP sem ver as dita-cujas, hein?
Acompanhei interessada a rotina de um quinteto de vacas soltas, sem jamais interferir que sei bem o meu lugar. Elas e a sua líder malhada carismática dando uns berros, todas com momentos de ternura deitadas juntas todo fim de tarde antes de se recolher. Fiquei atenta aos seus olhares que (assim interpretei) me respondiam "bããooo" e sinalizavam ter notado que no meu prato de churrasco só entrava legume defumado.
Fiz uma amizade tremenda com a bovinolândia - vá contando quantos prazeres às avessas desfrutei daí, desde o meu eu mais infantil, vergonhoso e urbano aflorado até um rir de mim mesma que tomou cada dia.
Fui na cachoeira e não nadei, estava frio. Fui na beirinha do rio e meti os pés algumas vezes, estava frio mas estava bom. Caminhei, dormi, comi, bebi, olhei, olhei, olhei. Eu me vi toda, da infância até hoje, em cada delícia agridoce que me lembrou de ser maravilhosamente pequena, uma parte integrante da natureza que se estraga mais que do que devia, mas que tem seu papelzinho, vai.
São abundantes as auto-observações que somos capazes de fazer quando a cacofonia do olhar externo cessa.
É bom e ruim ao mesmo tempo, insisto, porque nos situa. Tudo o que é maior que as nossas microambições gargalha da nossa cara diante de um céu estonteante ou de um bando de tucaninhos voando sem medo na sua frente.
Um pouco dessa delícia toda volta na bagagem.
Com os anos e com treino, os prazeres paradoxais começam a penetrar na rotina, agregando uma camada de perspectiva que faz mais bem do que mal.
É tipo a cobertura durinha do bolo de cenoura, que a gente ama e sabe que acrescenta toda uma bossa a algo que seria mais bonito que gostoso - eu gosto de bolo de cenoura, mas convenhamos que ele não é o mesmo sem a casquinha. Já o de fubá vai bem solo, obrigada. Entende a diferença de carisma? A chococasquinha do bolo de cenoura (pode ser brigadeiro, se preferir) é o que torna a experiência memorável, a gente engole e desfruta tudo, claro, mas o carisma sabemos bem onde se localiza.
Pois bem, meus prazeres agridoces são a casquinha de chocolate da minha vida, que tornam o meu diálogo interno mais interessante - ainda que ninguém ouça, eu sei que tenho a casquinha carismática ali, me dando combustível para mastigar o bolo de cada dia, tantas vezes mais bonito que gostoso.
Imagino que gourmands possam alegar que a combinação é que faz o equilíbrio de sabor e textura, e o sucesso do bolo.
Na vida, estou achando, a felicidade vem mais ou menos assim também: uma boa massa de rotinas e responsabilidade e, para equilibrar, uma casquinha de autoconsciência sarcástica sabor natural borogodó.
obs. Termino esse texto rindo de mim mesma; o meu diálogo interno agridoce está nu, bem aqui. Se você terminou, olha, vai para o mato e conversa com as vacas também. De muitas formas, elas sabem muito mais que a gente.
Eu, o que faço e Pause
Oi, eu sou a @brufioreti 🙂.
Jornalista. Especialista em branding pessoal. Sócia do projeto Método Bold e mentora de carreira.
Defensora do repertório amplo e do combo ler/escrever para viver melhor. Generalista por natureza, interessada em comportamento, neurociência, emoções, arte, feminismo, moda e tendências.
Tenho 20 anos de jornalismo como editora em grandes redações, cobrindo principalmente Cultura, Comportamento, Moda e Beleza: os lugares que mais me marcaram foram a Revista Glamour, onde fui redatora-chefe por 5 anos, e o Estadão e seu extinto primo paulistano Jornal da Tarde, nos quais passei 6 anos.
Tenho 42 anos, vivo em SP desde 2006, há 9 anos empreendendo. Aos interessados, tenho 6 planetas no mapa em Libra, estou no meu terceiro casamento, tenho 3 gatinhos, zero filho.
Dezenas de cursos ministrados por mim, chuto pelo menos uns 15 como aluna entre pós e extensões. No mínimo 8 mil alunos e mentorados até aqui, palestras que não consigo mais contar. Um burnout pra conta e um sem-número de ideias pra dividir <3.
Nesta newsletter, tento sempre voltar à estaca zero e me lembrar do que realmente importa. Aciono o botão PAUSE e venho compartilhar sem pressa nem algoritmo coisas que me ocorrem gerundiando: vivendo, mentorando, botecando, estudando, ensinando. Trago crônicas despretensiosas, dicas culturais, sacadas que quem sabe podem inspirar aí.
PAUSE é para quem quer pensar novos moldes de vida e carreira e sabe que pausar é o único jeito de continuar em movimento. Essa lição, aprendi com muita força depois de passar por um burnout e faço questão de levar adiante.
obs. para saber mais dos meus trabalhos para além desta seara, acesse (para meu curso de branding pessoal) metodobold.com.br e também (para palestras e afins) brufioreti.com.br
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