PAUSE 82 | O melhor bolo de laranja
Uma crônica pessoal sobre o doce e o amargo da vida. As delícias de valorizar a inteligência cristalizada. E um repertório gostoso para o feriado

O melhor bolo de laranja que eu já provei tinha uma casquinha especial que se formava acima da calda. Brilhava tanto que clamava por uma foto antes de cada bocada.
Macio, quentinho porque recém-assado, corado e aromático.
O melhor bolo de laranja que eu já provei tinha por cima da calda lustrosa, feita em casa, uma delicada camada de papel toalha que absorveu todo o açúcar alaranjado e deixou a aparência do bolo, por assim dizer, instagramável.
O papel toalha dourou a pílula e só foi notado depois de umas boas mastigadas porque a cozinheira desconfiou que não havia motivo para aquela sutil textura extra por cima da sua obra de arte.
O melhor bolo de laranja que eu já provei arrancou muita risada da cozinheira, errando por uma desatenção boba, do alto da sua experiência de quase 72 anos e muitas décadas cozinhando para a família na maior destreza.
Distração justificável, depois de experimentar uma das piores semanas da sua vida. Ela tinha recém-descoberto um tipo grave de câncer, sem apresentar nenhum sintoma, e estava investigando formas de se tratar.
Tomou seu café adoçado gargalhando por fora e provavelmente chorando um pouco por dentro; eu tomei o meu amargo, com uma sensação semelhante de gratidão pelo momento e medo de como seriam os próximos cafés com bolo.
Mas aquele café também foi o mais doce que provei até então.
O papel fazendo as vezes de calda de bolo e o seu inseparável café passado: a vida doce e amarga ao mesmo tempo. A vida pronta para revelar camadas inesperadas, esteja você pronto ou não para experimentar suas variadas texturas.
Algumas cozinheiras, quando erram, acertam em cheio. Emocionam, riem de si mesmas, encorajam, edulcoram, dão o tom.
Ora fazem, ora precisam que façam por elas.
Nunca sabemos quem vai errar na calda e quando. Mas é certo que as receitas serão desandadas de vez em quando, materializando o improviso imperfeito que tempera a própria vida.
O melhor bolo de laranja que eu já provei teve gosto de cumplicidade e coragem. De amor, principalmente.
O melhor bolo de laranja que eu já provei quem fez foi a minha mãe.
Falando em açúcar, vamos à inteligência cristalizada
Que essa pequena crônica nos ajude a trocar um pouco da sanha por tendências de nomes estrangeiros pelo interesse no simples - que já é uma tendência em si, eu sei.
Os momentos com os nossos ensinam como a roda viva de inteligência artificial, rede social e livros dito "práticos" não nos alimentam profundamente. São fast food para o cérebro, shakes engana-fome para o coração.
Nada como a sabedoria - ou, se formos mais técnicos, nada como a inteligência cristalizada.
Trata-se do acúmulo de experiências e conhecimentos ao longo da vida, do repertório cumulativo de cada um que permite à pessoa ser cada vez mais autoral nas suas decisões, criações e resoluções de problemas.
A inteligência cristalizada é uma descoberta bonita, que data originalmente dos anos 1940 e até hoje é amplamente aceita.
Vai na contramão da desvalorização dos mais velhos. Quanto mais idade tem a pessoa, mais inteligência cristalizada apresenta e, portanto, mais chances de surpreender. Afinal, há um arcabouço rico de soluções e inspirações à sua disposição de maneira não óbvia.
Tenho notado esse tipo de saber aflorar lindamente na minha mãe, mas também em outras pessoas ao meu redor, que, como eu, envelhecem sorvendo um repertório prático e emocional bem intenso.
Tudo conta, tudo nos forma. Cada bolinho de laranja em família ensina.
obs. Minha mãe está se tratando e com a inteligência cristalizada a mil. Todos os dias me surpreendo com sua capacidade de se superar nas fragilidades. Se ela não falhasse na calda, não seria tão ela - a lição que ela mais me ensinou, talvez, seja a de ter coragem de rir de mim mesma e usar a minha inteligência (que vai se cristalizando) para ser autoral, íntegra sempre que possível. Sou fã da Ana Lúcia, vocês merecem a receita do bolo - e de vida - dela.
Um filme com esse gosto de aconchego
Ao escrever hoje, só consigo lembrar as sutilezas transmitidas no ambiente da cozinha pelo filme "Sabor da Vida", disponível na Prime Video, que provavelmente já indiquei porque gosto bastante.
Com Juliette Binoche genial no protagonismo, o longa nos leva numa toada poética pelos afazeres em muitas etapas da tradicional cozinha francesa, enquanto apresenta um amor delicado e cortês que inunda a casa.
Tem uma elegância de alta gastronomia, sem a sisudez que hoje esperamos dela. É casa, aconchego, concentração, leveza. É a cozinha como ambiente de troca amorosa, acúmulo de inteligência cristalizada, generosidade e paixão pelo aqui-agora, pelos processos.
É sentar e comer observando os sabores e não precisar de muitas palavras no meio do caminho. É cuidado com o outro por meio dos sentidos.
Que nos inspire a voltar a compartilhar mais momentos na cozinha, à mesa, pela comida, mas muito mais pelas pessoas. Memórias vão para o forno nesse ambiente e saem orgulhosas quando precisamos delas.
E um livro com o banal e o belo de envelhecer
“Sem Tempo a Perder”, reunião dos textos da escritora Ursula K. Le Guin feitos para um blog durante a velhice, é de uma verdade tão direta quanto poética.
Talvez a vida tenha mais beleza quando se fala dela sem amarras, com foco na beleza cotidiana.
Avessa à romantização da velhice, Ursula não pede licença para assumir as novas dificuldades que aparecem com a idade, enquanto se deleita com pequenezas, como a convivência diária singela com seus gatos.
Uma leitura em pequenos textos perfeita para fomentar momentos de reflexão sobre si mesmo e sobre os que envelhecem ao redor.
Deixemos que envelheçam, pede Ursula. Velho não é palavrão nem demérito. É uma fase da vida que merece o nosso olhar menos maculado pela ânsia de atropelar o tempo.
Eu, o que faço e Pause
Oi, eu sou a @brufioreti 🙂.
Jornalista. Especialista em branding pessoal. Sócia do projeto Método Bold e mentora de carreira.
Defensora do repertório amplo e do combo ler/escrever para viver melhor. Generalista por natureza, interessada em comportamento, neurociência, emoções, arte, feminismo, moda e tendências.
Tenho 20 anos de jornalismo como editora em grandes redações, cobrindo principalmente Cultura, Comportamento, Moda e Beleza: os lugares que mais me marcaram foram a Revista Glamour, onde fui redatora-chefe por 5 anos, e o Estadão e seu extinto primo paulistano Jornal da Tarde, nos quais passei 6 anos.
Tenho 42 anos, vivo em SP desde 2006, há 9 anos empreendendo. Aos interessados, tenho 6 planetas no mapa em Libra, estou no meu terceiro casamento, tenho 3 gatinhos, zero filho.
Dezenas de cursos ministrados por mim, chuto pelo menos uns 15 como aluna entre pós e extensões. No mínimo 8 mil alunos e mentorados até aqui, palestras que não consigo mais contar. Um burnout pra conta e um sem-número de ideias pra dividir <3.
Nesta newsletter, tento sempre voltar à estaca zero e me lembrar do que realmente importa. Aciono o botão PAUSE e venho compartilhar sem pressa nem algoritmo coisas que me ocorrem gerundiando: vivendo, mentorando, botecando, estudando, ensinando. Trago crônicas despretensiosas, dicas culturais, sacadas que quem sabe podem inspirar aí.
PAUSE é para quem quer pensar novos moldes de vida e carreira e sabe que pausar é o único jeito de continuar em movimento. Essa lição, aprendi com muita força depois de passar por um burnout e faço questão de levar adiante.
obs. para saber mais dos meus trabalhos para além desta seara, acesse (para meu curso de branding pessoal) metodobold.com.br e também (para palestras e afins) brufioreti.com.br
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