PAUSE 63 | A técnica do degelo
Se você fotografasse e "congelasse" a sua vida hoje, gostaria do que vê?
Esta é a primeira newsletter PAUSE pra valer, e o email de número 63 desta newsletter, que honra tudo o que rolou na Descarrego, como expliquei aqui - basicamente, a news está mais focada e agora temos assinaturas pagas (R$35/mês) que dão acesso a conteúdo completo, banco de textos, um novo Clube do Livro etc - sobre assinaturas, vem saber mais.
E o conteúdo de hoje? Tem texto, narração e dicas.
No texto a seguir, conto sobre uma espécie de exercício mental que criei para avaliar como está a vida e que se mostrou muito eficiente, do tipo que coloca as coisas nos trilhos. Curiosa pra saber como você adaptaria essa ideia um tanto… metafórica.
Ah, tem o texto narrado também, que volta nessa fase profissa de PAUSE porque sei que muita gente curte.
Na sequência, trago referências de filme, série e livro que têm a ver com o texto e te lembro que teremos Clube do Livro para assinantes pagos - na primeira semana de agosto libero o primeiro que vamos ler juntos.
Pause um pouquinho e aproveite. É feito com amor :-)
A técnica do degelo
A fotografia é tempo congelado.
Embora a forma com que fotografemos hoje nos faça captar frames minúsculos da realidade e ter infinitos retratos que jamais serão vistos, a fotografia, a priori, continua a ser tempo congelado. Uma fração capturada, pronta para se revelar e nos revelar mais do que imagens concretas, a ideia que fazemos das coisas e nos causa emoção.
Tempo congelado na eterna possibilidade de um degelo sentimental.
Tal qual o olfato, bem representado por aquele cheio de bolinho de chuva da avó ou do brinquedo da infância, uma imagem do que nos é familiar aquece e ativa uma porção de sentidos obscuros, os que a gente não sabe explicar, só apontar no corpo.
Com eles, somos capazes de transcender tempo e espaço para, em nanossegundos, reviver o momento.
Quando o momento degela, vira lágrima.
Muitas vezes não chega a caber em fonemas antes de se misturar a palavras familiares, como nostalgia, gratidão, arrependimento, saudade.
Sem esse degelo eventual, a gente esfria e, às vezes, a vida congela, mesmo quando não parece.
Acelerados e estagnados?
Estagnar está longe de ser apenas coisa de quem vive orientado ao passado. Tem a ver também com não evoluir como ser humano. Com se ferir todo dia para caber nos padrões alheios. Com fechar os olhos para o que passou e preencher os vazios com movimento incessante e agitação tecnicolor. Movimento vibrante, mas superficial. O paradoxo dessa vida em vídeo acelerado é que ela paralisa justamente porque nunca dá tempo de parar - pausar para ver o retrato e sentir o tempo.
O retrato aqui é mefatórico.
Falo da necessidade urgente de registrar mentalmente e profundamente o momento, num exercício constante de viver o hoje.
Soa tão clichê falar, ainda mais escrever, mas não temos nada além do aqui-agora, e é tão aterrorizante pensar nisso que passamos a correr desorientados, nos esbarrando sem pedir desculpa - como o hábito que tanto estranhei ao vir morar em São Paulo, muitas vidas atrás.
Sabemos da importância do hoje, mas não congelamos os momentos.
Sabemos que precisamos pausar, mas nos esquecemos de parar para fazer os degelos importantes.
Sabemos da volatilidade da vida, mas estamos nos esbarrando sem olhar a nós mesmos e aos outros há tanto tempo que temos medo de não encontrar o caminho de volta.
E existe caminho de volta a não ser esse breve rememorar?
Não lidando com a vida
Penso no filme “Dias Perfeitos”, que para mim num aspecto específico dialoga com “The Bear”, a série-hit que está na terceira temporada agora. São ambos, numa brevíssima análise, obras sobre como (não) lidar com o trauma familiar.
Um foge tendo uma vida calada, reduzida ao mínimo e aos pequenos rituais presentes, ligados à natureza e à observação do entorno.
O outro foge enchendo a vida de trabalho, perfeccionismo e rituais presentes, só que ligados à sua ruidosa cozinha, numa tentativa inútil de chacoalhar pra longe os flashes mentais que tão bem retratam que para o cérebro não existe passado, presente, futuro.
Ambos ritualizam a vida para não pensar no que machuca, porque a dor de se voltar para dentro é dilacerante, e eles precisam seguir.
Evidentemente que há muito mais poucos parágrafos para dizer sobre essas obras, ambas premiadas, interessantes, cheias de camadas e que recomendo fortemente para você.
Meu ponto aqui é: primeiro, mostrar que até quando parecemos nos conectar ao presente - e o trabalho e os rituais em geral são bons nisso - podemos estar desconectados de nós mesmos. A ação pode ser usada nas nossas vidas, nos moldes mais zen ou aceleradíssimas, como forma de nunca parar para o degelo: o ato de decantar o que aconteceu e está acontecendo, necessário para que o movimento seja também interno. Se a obsessão ritualística e a negação de encarar as dores for tão arraigada, como é que a vida pode ganhar novo ritmo e nova direção?
Caixas de fotos e livros vão se acumular, estrelas Michelin virão, louros diversos, dias calmos talvez, e a sensação de estar vivendo meio dissociado, em realidades paralelas, continuará ali, atormentando o cérebro.
Em quantos tempos você aguenta estar?
Creio que qualquer pessoa que tenha convivido por anos com questões mal-resolvidas, de traumas familiares a insatisfações no trabalho ou relações amorosas cheias de ruídos… qualquer pessoa que tenha lidado e cuidou disso vai poder dizer a diferença que faz mexer no desconforto mental. Como a vida avança depois!
Você e a sua câmera mental
Há outro ponto, bem mais óbvio, de citar a referência de “Dias Perfeitos”: a própria questão da fotografia. O personagem central anda por aí com uma câmara antiquada registrando a banalidade cotidiana com cuidado e rara apreciação à beleza. Ele capta mentalmente e então registra os mesmos lugares, muitas vezes, mas quem disse que com o mesmo olhar?
Consigo apagar por alguns minutos a problematização do trauma que eu mesma pincelei para pensar nessa atitude como uma forma incrível de congelar o tempo para olhar exatamente onde estamos e questionar, principalmente, se esse é o lugar onde queremos estar.
O lugar não é um lugar precisamente. Falo da própria vida como ela se apresenta para você hoje.
Se você fotografasse a si mesmo agora e iniciasse o processo de degelo de forma lenta e intencional, ia gostar da descrição do seu “lugar na vida”?
Se contasse o que está vivendo em voz alta para você mesmo, uma versão sua de dez anos a menos e depois para uma versão sua de dez anos a mais, o que elas te diriam? Melhor: o que elas sentiriam ao encarar o seu tempo/espaço atual? Será que te dariam um conselho?
Se uma foto de um momento importante costuma trazer as sensações indizíveis que rapidamente se mesclam a sentimentos agridoces, quais seriam as sensações de se ver nesse espelho tão cru, agora. Onde morariam essas sensações no seu corpo (sim, tente localizar, é impressionante como a gente sabe)? Quais seriam os sentimentos mais elaborados, talvez difíceis de engolir, ao ver um retrato da sua vida agora?
Esse é o degelo. Essa é a fotografia que você pode fazer olhando para a sua experiência atual e descrevendo-a cruamente, antes de qualquer análise. Congelando o tempo.
E essa seria uma forma bonita de fazer um pouco diferente dos personagens que citei para encarar, senão traumas grandiosos, o pequeno trauma cotidiano de viver neste mundo e ter que forjar certezas enquanto corre em direção a algo que talvez nem faça mais sentido.
O degelo do nosso retrato emocional cotidiano tem o poder de identificar o que envelheceu mal na nossa trajetória e nos dar perspectivas mais profundas. Se aderir à ideia, e altamente recomendo, só imploro que use palavras gentis, embora diretas, para esquentar a sua relação com você, sem emprestar cobranças alheias nem começar uma “lista de coisas que eu gostaria de ter feito mas falhei e preciso tentar”, em autocomiseração alinhada à sociedade da performance.
Essa não é uma prática de alta performance no sentido empresarial. É uma prática de autoperformance, no sentido emocional.
Obrigar-se a estar autoconsciente a ponto de conseguir se ver, se entender e quem sabe mudar a rota se esta estiver te adoecendo e tornando infeliz. Contemplar os momentos por si só é bom. Parar para se ver - e se ler nesses retratos - é para corajosos.
Retrato terapêutico
Acho que a terapia traz muito disso, a minha pelo menos traz. É um momento que me obrigada a parar para me olhar e então analisar o que fiz ou não, os porquês e tentar corrigir aos poucos a rota.
Mas não venho com a conversa já gasta de “todo mundo deveria fazer", porque todo mundo é muita gente e porque a minha própria psicóloga, que é sábia e gentil em igual medida, já me explicou que “terapia não é para todo mundo" por inúmeras razões.
Eu me contento agora com essa máxima e venho humildemente dizer que esse degelo por escrito que criei pode ser bem terapêutico. Até porque podemos começar com um retrato suave, um fotografia mental apenas de uma área da vida a ser sentida e pensada, umas lágrimas banais que podem ser compartilhadas com um amigo…
A ideia da fotografia, do congelamento e tudo isso veio porque eu mesma pratiquei nesta semana, ainda sem emprestar toda essa “metaforização” para a coisa, e achei positivo.
Positivo embora não contente, você entende a diferença, certo?
Pausei. Divaguei. E quando vi tirei um retrato da minha vida, dia desses, e embora ele não viesse em branco e preto (nem meus sonhos o são), ele estava meio turvo. Isso é íntimo, mas escrever é parte de degelar, então, lá vamos nós.
A coloração do meu retrato era daquelas meio aguadas e quentes, dos início dos anos 1980, e eu vi uma Bruninha criança meio que nem o Carmen, do “The Bear", sendo excelente em tudo, e a irmã dele na série, buscando não incomodar ninguém, e essa Bruninha estava aqui, presentíssima. Gente, fazendo o quê? Precisei degelar chorando para aceitar as muitas nuances disso, inclusive a necessidade de deixar esse mix de posturas traumáticas no passado para iniciar uma etapa da minha vida que não espera, que já começou.
A coisa foi longe.
Degelei relações pessoais e profissionais que o retrato desta semana me mostrou e consegui mudar coisas, de maneira que pode ter parecido impulsiva, mas foi sentida e racionalizada, porque veio da Bru atual, e não da pequenininha - que abraço e acolho sempre que me lembro, porque como ela precisa!
A imperfeita e bem adulta de 2024 chega à newsletter de hoje com a certeza de que essa pausa mental foi dos exercícios mais ricos que já fez. Porque libertou coisas ancestrais que estavam lá, presas do gelo.
Mexendo nos fósseis
Eu sei que tem coisas que devem permanecer lá, como os fósseis de microorganismos perigosos que começam a aflorar nos polos com o aquecimento global e nos deixam apavorados. Uma vez soltos, não fazemos a menor ideia de como combatê-los, isso amedronta. Com os monstros mentais, tem um pouco disso.
Se o apaixonante personagem de “Dias Perfeitos” não consegue falar nem sair por segundos da sua rotina, ele tem suas razões. Assim como o chef da série. Assim como você e eu algumas vezes.
Porém, para a vida começar a ser caminhada em vez de corrida, ou ser um passo atrás de outro em vez do dia da marmota, é bom escolher uma foto mental para sentir o tempo, se é que ele existe. Sobre isso, não quero me alongar.
Só sinto que o tempo está passando rápido demais. E o meu quero que seja meu amigo ainda hoje.
Se preferir, a versão narrada do texto está aqui <3
Pause para ler, ver, sentir…
Terceira temporada da série “The Bear” (Disney +) e do filme “Dias Perfeitos” (Mubi): ambas indicações que estão no texto principal e merecem o seu olhar. Com um adendo para cada um.
Em “The Bear", por favor, repare no ritmo de captação e edição de cada temporada, porque dizem muito sobre o sucesso da série em tempos que estamos acostumados a linguagem de rede social. A última temporada tem uma pegada bem diferente, olha bem para dentro, por isso me remeteu à ideia do degelo.
Já em “Dias Perfeitos", atenção para a trilha sonora espetacular e a catarse da cena final, que diz tudo sem dizer nada e traz um retrato da experiência humana ímpar. Eu acho. Estou chorando e sorrindo até hoje rs.
Série “A Escada" (Max): é bem pesada, porque é baseada na história de um crime que realmente aconteceu. Tem uma temporada só, mas quis trazer hoje para propor uma observação extra. Olhar menos para o suspeito de assassinato, que é o foco da série e é um papel genial, e mais para a personagem Kathleen (Toni Collette), que morre na série - não é spoiler, porque essa é a premissa.
Eu reassisti a essa série recentemente e pude dedicar esse olhar mais para a mulhres, e como ela estava exausta, dando todos os sinais de que não aguentava mais trabalhar, e tinha que segurar um marido manipulador e uma família enorme em alto padrão de vida. Uma mulher que precisava ser heroína e que via seus dias engolidos por demandas da casa, da família, do trabalho em plena bancarrota.
É por isso que trouxe essa referência nesta newsletter: ela tinha tão pouco tempo, obviamente não sabia, e estava completamente assoberbada sem que ninguém dissesse para ela: apenas pare! Claro que não. E provavelmente ninguém vai dizer isso para você; para mim também foi assim. O mundo não quer que a gente pare, a máquina precisa girar, o dinheiro tem que entrar.
Precisamos de retratos duros como este até para possamos perceber se estamos assim, exaustas, ocupadas, sendo exploradas, sem apoio e acabando com a nossa saúde. Essa série oferece uma imagem difícil, mas que talvez te impulsione no seu degelo.
Só atenção: é forte, tá? Observe como está a sua sensibilidade.
Livro Dysphoria mundi, Paul B. Preciado: gente, leitura pesadona. Mas comecei a ler bem nesta semana de degelo, e o início do livro me pegou. O autor fala sobre o nosso tempo, a contemporaneidade, e vai desenvolvendo de forma não linear pensamentos sobre como estamos diante de uma revolução protagonizada pelos dissidentes, os que antes eram os “disfóricos", os rejeitados pela ordem capitalista e patriarcal, pelo binarismo, pela medicina etc. É complexo e grande. Não vou colocar um desses no clube do livro, só quero indicar para você que também se interessa por questões de gênero e gosta de pensar a realidade por perspectivas não coloniais. Preciado oferece um mar de reflexões, e dá pra se afogar ali. Eu gosto de nadar nessas águas, e você?
O que vem por aí
Lembrando que agora teremos um Clube do Livro - contei sobre aqui.
Vamos fazer encontros no Zoom a cada 3 meses, para dar tempo de ler, sem ficar uma loucura. Podemos também ter encontros extras por lá, vou sempre avisar pela newsletter.
Na primeira semana de agosto, aliás, vou indicar o livro que vamos usar pra iniciar o Clube. Lembrando que o Clube vai ser para assinantes pagos, então vem comigo!
Eu, o que faço e o meu Pause
Oi, eu sou a @brufioreti 🙂.
Jornalista. Especialista em branding pessoal e transição de carreira. Defensora do repertório amplo e do combo ler/escrever para viver melhor. Generalista por natureza, interessada em comportamento, neurociência, emoções, arte, feminismo, moda e tendências.
Tenho 20 anos de jornalismo como editora em grandes redações, cobrindo principalmente Cultura, Comportamento, Moda e Beleza: os lugares que mais me marcaram foram a Revista Glamour, onde fui redatora-chefe por 5 anos, e o Estadão e seu extinto primo paulistano Jornal da Tarde, nos quais passei 6 anos.
Sou das Humanas, mas trago números para me apresentar, veja você.
Tenho quase 42 anos de vida, 18 anos vivendo em São Paulo, 8 anos de empreendedorismo, 6 planetas no mapa em Libra, 2 casamentos, 2 gatos, zero filho.
Dezenas de cursos ministrados por mim, chuto pelo menos uns 15 como aluna entre pós e extensões. No mínimo 8 mil alunos e mentorados até aqui, palestras que não consigo mais contar.
Uns 5 projetos iniciados e não terminados, livro sendo escrito. Muitos porres nesta vida, poucos palpites sobre outras.
Um burnout pra conta e um sem-número de ideias pra dividir <3.
Nesta newsletter, tento sempre voltar à estaca zero e me lembrar do que realmente importa. Aciono o botão PAUSE e venho compartilhar sem pressa nem algoritmo coisas que me ocorrem gerundiando: vivendo, mentorando, botecando, estudando, ensinando.
Trago leituras, práticas e em breve Clube do Livro para quem sabe que pausar é o único jeito de continuar em movimento.
Ah, essa lição, aprendi com muita força depois de passar por um burnout e faço questão de levar adiante.
obs. para saber mais dos meus trabalhos para além desta seara, em palestras e cursos, acesse brufioreti.com.br
obs2. para assinar a newsletter, é só colocar o seu email abaixo. Você também pode já garantir a sua assinatura paga, com os benefícios descritos antes.