Olha, quando você coloca seus sentidos a serviço da escrita, brotam coisas como essa newsletter, uma veia aberta no meio do concreto de São Paulo que fiz para você da janela de casa.
Espero que pulse por aí e que, em vez de causar ruído, provoque um serena reflexão sobre lugares físicos e metafóricos nos quais nos demoramos… às vezes mais do que deveríamos.
Pega sua ferramenta e vem.
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Descarrego #7 | Britadeiras, muros e amores
Calculo quatro fontes de ruído diferentes.
O toc-toc no apartamento de cima, o vruuuu vibrante da máquina no andar debaixo, mais um chiiiii alto no prédio da frente e outro pah-pah-pah seco em algum ponto indecifrável. A definição da poluição sonora.
Resolvo ligar o som para "acabar de vez com essa disritmia" - música que, na voz do Zeca Baleiro, me acompanha na agonia da rotina supostamente perfeita de viver no coração de Pinheiros, em São Paulo.
Ocorre-me que o bairro, tido com desejo pela pauliceia deveras desvairada, na qual me incluo, é uma sombra do que foi e do que era pra ser. Virou um grande e interminável trecho em obras.
Cada vez menos casas charmosas entre árvores e lojinhas locais, cada vez mais toc-tocs, chiiiis e pah-pah-pahs financiados por empreiteiras sedentas por lotar cubículos de gente disposta a pagar uma fortuna para estar no bairro de charme, já nem tão charmoso assim.
Embora mais charmoso que tantos outros da capital.
Ocorre-me ainda o absurdo de buscar essa elegância descolada e pagar uma fortuna por ela, para só muito tarde constatar que era um poço de ruídos (ué, eles estavam mudos num primeiro momento).
Ocorre-me, devo admitir, que sou a encarnação desses paradoxos e uso a frase acima como uma metáfora para relacionamentos.
A gente se instala na área sem que saber da poluição que cada um carrega
A gente se instala na área sem que saber da poluição que cada um carrega.
Tal qual meu bairro, no início a pessoa parece serena, acolhedora, atenta, um porto seguro. Como uma ruazinha charmosa de Pinheiros, oferece novos sabores, cores, possibilidades, encanta.
Com o tempo, as britadeiras começam a trabalhar. O que está debaixo do solo vai aflorando, os bueiros começam a entupir… e, ainda assim, achamos que é um excelente investimento permanecer ali!
Teimosia.
A tentação é pensar que se trata de uma obra ou outra apenas; um ajuste aqui, outro acolá. Não serão reformas intermináveis! Logo o toc-toc passa ou pelo menos arrefece.
E, em vez disso, começam a pipocar novos e barulhentos canteiros de obras.
Você acorda um dia e tem um buraco imenso à sua direita, cavado na calada da noite para abrigar um arranha-céus de raivas contidas e más interpretações nunca verbalizadas. Mal esse sulco aparece, as máquinas já passam a remexer o solo a todo vapor para erguer o edifício que amanhã vai servir de muro para vocês.
Você acorda um dia e tem um buraco imenso à sua direita, aberto na calada da noite para abrigar um arranha-céus de raivas contidas e más interpretações nunca verbalizadas
Muro de muitas camadas, com estrutura metálica incrustada.
Nos meses seguintes, tal qual as associações do bairro que lutam para manter as fachadas menos verticais e mais verdes, você faz seus cartazes e protesta. Resoluta, diz que vai ser ouvida e se põe de plantão sobre o concreto ainda fresco. Diz que está chateada com o andar da carruagem, mas que topa dialogar. Que compreende, mas precisa ter acesso aos planos e participar deles para uma convivência sustentável na vizinhança... na vida.
Escuta um "sim, sim, vamos" condescendente. E, claro, nada acontece.
Antigos moradores já passaram por isso e revelam como se sentiram.
Eles viram os muros se multiplicar há anos. Perderam o panorama das adjacências, o pôr do sol alaranjado, a iluminação matinal e hoje se apegam a frestas de luz. São apaixonados demais para assumir que a fresta só diminui e estão rodeados de cinza com umas pinceladas de gracinhas. Contentam-se, saudosistas, com as migalhas de verde que as ruas lotadas de carros oferecem.
Estão conscientemente míopes - coisa que o amor faz. Amor por um lugar, uma casa, uma história, uma pessoa.
Estão conscientemente míopes - coisa que o amor faz. Amor por um lugar, uma casa, uma história, uma pessoa
Ocorre-me, avançando, que essa miopia escolhida prolonga convivências no afã de recuperar uma paisagem que não volta mais. Dói assumir, escrever e avisar, mas não volta.
O buraco não será preenchido, os prédios não vão parar de crescer, novas argamassas serão usadas para completar as carcaças de prédios projetados bem no meio do seu quintal, os barulhos ficarão ensurdecedores até você gritar: CHEGA!
Esse "chega" devia ter sido dito quando mesmo?
Será ouvido com tanta cacofonia?
Você talvez nem se lembre, esteve distraída com os ruídos do entorno por tanto tempo... Fora que seus protestos não foram organizados o suficiente, foram fáceis de abafar. Em que estratégia errou? Teve estratégia?
Você se envergonha, sofre, se culpa, pensa em pegar uma marreta e mutilar os muros erguidos entre vocês. Cogita vandalizar os edifícios de forma a gritar o que não disse com piche, palavrão e letras garrafais.
Aí vê que tem coisas pelas quais não adianta se sujar.
Você se envergonha, sofre, se culpa, pensa em pegar uma marreta e mutilar os muros erguidos entre vocês. Cogita vandalizar os edifícios de forma a gritar o que não disse com piche, palavrão e letras garrafais. Aí vê que tem coisas pelas quais não adianta se sujar
Pinheiros está avançado demais para não ser verticalizado, o esforço agora parece paliativo. A paisagem já mudou.
É hora de buscar outros bairros, mais verdes, horizontais, genuínos e, quem sabe, quietos e seguros. Se tiverem menos charme, que seja. Charme não compra felicidade, compra?
Charme às vezes custa uma fortuna, inclusive emocional, e sabemos que há preços que não devemos pagar. O que custa a nossa paz esgota qualquer tipo de reserva.
O que custa a nossa paz esgota qualquer tipo de reserva
Ocorre-me, por fim, que até posso aguentar as pauladas auditivas que a minha vizinhança me dá. Bate umas 16h e tenho um quase-silêncio (menos no carnaval).
Só não estou disposta a suportar os outros pah-pah-pahs e os toc-tocs, que provocam mais caretas e embrulhos no estômago que os dos pedreiros trabalhando.
Refiro-me às feridas da vida, amarga-vida, que cansei de cutucar, só quero que cicatrizem. O plano é protegê-las com muros altos, ainda que tenham um belo jardim vertical para enfeitar.
Você também, se puder, construa algumas paredes se "o seu bairro" estiver barulhento, perigoso, ferindo os sentidos e o coração. Um bálsamo encontrar silêncio do lado de cá da parede. Olha, você consegue até se ouvir!
Quer ouvir esse texto?
Clica a seguir para ouvir a versão desse texto narrada por mim. Não estranhe se tiver um som de britadeira ao fundo, afinal…
Muros & amores no Repertório
UM LUGAR
Ai, me sinto maldizendo Pinheiros, bairro que me abriga hoje e que amo de paixão, mas foi irresistível como metáfora… Para me redimir, trago um tiquinho do meu amor aqui.
Sim, apesar de ser um bate-estaca danado nos dias de semana, ele ainda é um elixir de lugarzinhos gostosos. Tenho uma vida ativa a pé na região e vou indicar o que está no meu dia a dia. O melhor mesmo é pegar um metrô e bater perna, tá? 1) Loja Paiol, um paraíso na Fradique Coutinho pra gente se perder com tanta arte brasileira. Ali comprei muitas das obras que enfeitam meu apartamento hoje - incluindo esse Belchior que sempre faz sucesso quando apareço nas lives. 2) Padoca do Maní, daquelas que não precisam ser novidadse para ser indicadas: sou pirada no caldo verde e no croissant recheado. 3) Cinesala, o cinema de rua que existe desde os anos 1960, com café/enoteca na frente e uma curadoria bem gostosinha, mescla filmes de grande bilheteria com mais alternativos. Vou toda semana. 4) Rua Matheus Grou, que já ficou bem conhecida porque é recheada de marcas de moda bacanas, incluindo a do meu designer do coração, Carlos Penna. Ali também fica meu sanduíche da vida, de abobrinha empanada do Matilda Lanches.
UM FILME
E aí, é bom mesmo? Foi o que mais ouvi sobre o badalado "AfterSun" e, sim, achei muito bom. Se tiver uma crítica a fazer, achando pelo em ovo, é o excesso de recursos estilísticos, às vezes parece que o filme quer gritar o tempo todo que é experimental - mas essa é uma opinião de telespectadora sem pretensão de ser cinéfila. Apesar dessa pequena observação, acho que tudo ali contribui para o clima de leve suspense da trama, um desconforto no ar, como se prendêssemos o fôlego o tempo todo esperando algo arrebentar. Parece que o protagonista, com sua agenda paralela interior, tem um muro com a filha de 11 anos, para usar nossa alegoria do dia. Eles derrubam esse muro vez ou outra, mas ele se reergue. Pelo visto, ficou imenso até a menina crescer. Atuações impressionantes, estética de babar, trilha 90’s trabalhada com intenção - a hora de Tender me arrancou lágrimas. Assistiria de novo.
UM LIVRO
Fui ler "Caderno Proibido", da italiana Alba de Céspedes, achando que poderia estar datado (a obra é de 1952). Mas as angústias da personagem escrevendo seu dia a dia e seus pensamentos num caderno comprado às escondidas se mostra incrivelmente sensível e atual, apesar de contar sobre o momento histórico. O que ela escreve de forma deliciosa não fala apenas com as donas de casa da época, mas com toda mulher que, de uma forma ou de outra, observa seu entorno e percebe como tem uma posição inferiorizada até diante dos filhos. É uma autora queridinha da Elena Ferrante, vale lembrar.
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Reticências
"stop
a vida parou
ou foi o automóvel?”
Carlos Drummond de Andrade
“Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.”
Carlos Drummond de Andrade
Quer hablar de jobs?
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Eu e o que escrevo
Textos, indicações de repertório e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, especialista em branding pessoal e carreira multipotencial, tenho pós em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai. Trabalhei em grandes veículos de imprensa por mais de 17 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso na prática no projeto Desencaixa, uma escola que mescla formatos e disciplinas com um TMJ constante! Pra dividir com mais gente a minha escrita e os meus desencaixes, faço esse Descarrego semanal! E no insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
Essa newsletter sai toda terça com um mix de texto lúdico e curadoria de repertório pra gente se soltar nas ideias e refs. Compartilhar faz MUITA diferença, então é só usar o botãozinho aqui:
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Eu amo o charme de Pinheiros e sou apaixonada nas formas que SP muda a medida que os bairros também mudam - e devo aqui dizer que acho você um reflexo bonito desse bairro tão cheio de personalidade, marcas sustentáveis e vestidos coloridos e esvoaçantes.
Ademais, a metáfora me caiu aqui como uma pesada verdade no colo. Dia desses assisti minha vizinhança "tranquila" ruir. Uso as aspas porque, de fato, a vizinha nunca é tranquila demais - eu que desligava meus aparelhos auditivos para não ouvir (e ignorava os instintos de fuga esquecendo o quão bruxonas e sabichonas somos quando se trata do intuir).
Você foi fantástica nesse Descarrego, Bru!
(quando estiver em SP, vou comer um croissant recheado em sua homenagem)
Beijo