Descarrego #58 | Faroeste digital
Criticar Legião, gostar de sertanejo e a era das opiniões absolutas e identidades fixas
Lá pelas tantas, se há um violão e suficientes garrafas de vinho, alguém puxa o dedilhado e começa a dizer que não tinha medo o tal João de Santo Cristo. Inicia-se uma catarse coletiva de dez minutos, com eventuais erros nos ganchos e um grito sofrido no final. Faroeste Caboclo é uma instituição nacional, assim como outras letras de Renato Russo, que cantou Brasília e as revoltas dos jovens brasileiros dos anos 1980 e 90 como ninguém.
Mas eu não devia dizer nada disso.
Gostar de Legião Urbana virou sinônimo de ser chato. Musicalidade fraca, canções palavrosas demais para pouco rock. O mesmo rock que está morto, ou moribundo, nos pubs frequentados por tiozões reacionários com camisetas surradas. Seria eu uma tiazona reacionária que ainda vê valor em rock, letra de música e eventualmente ousa ir a pub tomar uma cerveja preta e acabar a noite cantando aquela do Creedence Clearwater Revival?
De tiazona, pode me chamar. De reacionária, isso não.
Fã de Legião, desde pequena, e nem foi por opção. Uma criança que cresceu numa cidade pequena do interior de São Paulo tinha acesso a pouca variedade musical. Na TV, só Globo e SBT, além de Manchete com sinal ruim. Cresci ouvindo também música sertaneja, a raiz e a que aflorou na década de 1990. Hoje, quando visito a terrinha, termino os encontros com a família cantando pérolas tipo Convite de Casamento, de Gean e Giovani.
Ah, de novo, eu não devia estar dizendo isso.
Mesmo que traga a mais bonita das memórias afetivas, gostar de samba, ou melhor, de pagode, ou de sertanejo que não sejam raiz é atestado de pouca intelectualidade. E tem o lado oposto: para outros grupos, não gostar de nada disso é um acinte.
Raros são os que ousam se abrir a novos sons - seja o som das músicas, seja o das vozes dissonantes.
Aquela festa, a que tinha violão, Faroeste Caboclo e um Engenheiros do Havaí para arrematar o cancelamento, não termina em funk.
Peço perdão de novo, estou falando demais.
Não escutar funk, em bem sei, pode soar tão pecaminoso para alguns quanto o é ir até o chão rebolando "a raba", como pede o vocabulário dos que adotaram o ritmo depois de Anitta e por alguns minutos juram ser “da comunidade” mas nunca pisaram em uma. Não curtir funk, das duas uma, ou é sinal de preconceito ou de arrogância intelectual. Ai que de quem só não quer ouvir mesmo, sem corroborar com o grupo que posiciona o gênero como algo de valor menor.
Com mais pedidos de desculpas e novos ritmos, daria para continuar aqui tecendo a relação maniqueísta que tomou conta da sociedade e ganhou nos ritmos musicais palco para uma infértil intolerância.
Estamos com tanta necessidade de preencher nossas identidades esvaziadas que criamos verdades intransponíveis, nos fechando à possibilidade de mudar de ideia. Quem são os entendidos? Somos todos e somos nenhum. Todos, mesmo os desprovidos de ouvidos treinados musicalmente, se sentem aptos a opinar sobre qualquer tema e rechaçar visões divergentes com ódio ou sarcasmo. E os que poderiam abrir possibilidades justamente porque têm veia artística escolhem, em sua maioria, perpetuar preconceitos.
Raros são os que ousam se abrir a novos sons - seja o som das músicas, seja o das vozes dissonantes. Esquecemos que não precisamos gostar de tudo o que o outro gosta, podemos somente respeitar suas opiniões (quando são opiniões, e não crimes em forma de palavras, que fique registrado).
Estamos fadados a ouvir a mesma toada para sempre, sob pena de perder traços de identidade pueris mas que se tornaram fixos, do tipo "odeio Legião Urbana"? Só para estarmos certos até o final?
Falamos que não queremos rótulos, mas nunca os colocamos tão apressadamente na gente mesmo e nos outros.
Falamos que não queremos rótulos, mas nunca os colocamos tão apressadamente na gente mesmo e nos outros. Gosto e não gosto são leis férreas que nos dividem em grupos cada vez mais fechados e, portanto, bem pouco interessantes. Compreensível isso nos jovens, que estão descobrindo a paixões até construírem boas noções do “eu”. O que desanima são os quarentões, cinquentões mais vivendo essa espécie de adolescência tardia. Birrentos, mimados.
Sei que é dificílimo ouvir o que está fora do nosso conforto sonoro. Mas se não fizermos isso de propósito podemos estagnar numa bolha anacrônica para sempre, porque a tecnologia nos permite nos trancafiar em outro tempo/espaço e nos distanciar do hoje e dos outros. Falo com conhecimento de causa: eu mesma, se não me esforçar, passo o dia só a blues e MPB das antigas.
Mas gostos são gostos, não deveriam ser identidades.
Se o ídolo cair, a identidade pode vir a desmoronar junto. E eu quero a minha identidade calcada em mais que caprichos. Não quero que ainda sejamos os mesmos e vivamos como nossos pais... Porém me parece que nos tornarmos versões mais bem equipadas deles em seus tempos de Guerra Fria, na era de grandes verdades absolutas que, por sinal, caíram uma a uma. Desmemoriados, vamos repetir as suas histórias trágicas, só que com Spotify na cabeça e memes para nos entorpecer?
Na sociedade memética, aliás, compartilhamos as piadas que dizem sobre quem estamos, mas achamos que somos.
Na sociedade memética, compartilhamos as piadas que dizem sobre quem estamos, mas achamos que somos.
Esses dias, para sair da música um pouco, vi uma pessoa repostar o meme do Cillian Murphy virando os olhos com a legenda "eu vendo as pessoas que não têm filhos reclamar que estão cansadas". Até ri num primeiro momento. Mas aquilo me pegou num dia ruim, sei lá, e pensei na arrogância de uma mãe extremamente privilegiada (sei porque conheço quem postou) pensar que tem graça caçoar da exaustão de quem não pariu, mas pode ter uma vida difícil, enfrentar duras batalhas mentais, sustentar a família expandida, entre outras durezas que nascidos em berço de ouro talvez nem sonhem.
Eu não costumo julgar as olheiras dela, mas ela pode desqualificar as minhas à vontade.
Convenhamos, ela pode. E, quanto mais simplificar, mais ibope terá. Além do que como mãe ela ganha essa espécie de licença para criticar quem não é. Eu que lute, eu que dê unfollow se me incomodar, eu que procure apenas amigas que não maternam e me feche numa bolha. O oposto do que quero e acredito, creio que já deu para perceber. Não sou nenhum monge, mas tenho me esforçado para encarar alguns incômodos e conviver. Se eu estava melindrada, não acho que ela deveria pagar por isso. Não é errado que ela se sinta como se sente, nem que eu me sinta como me senti. A dor dela não é menor ou maior que a minha. É outra. Foi um desencontro de perspectivas. Para mim, um microexercício de tolerância ao me calar e tocar a vida.
Mas até falar disso é perigoso. Fazer uma crítica a uma mãe ou a alguns grupos corre o risco de virar generalização, dicotomia intransponível entre “nós” e “eles”.
Vivemos tempos polarizados, faroeste digital, lei de talião.
Muros altos erguidos nem se sabe quando não querem ser derrubados. Mas aí os preconceitos começam a ser combatidos, o que incomoda muita gente. Gritos na internet e nas ruas. Pouco a pouco, oprimido começa a querer virar opressor, e tudo se sacode mais um pouco. Mais gritos. Terremoto, sacode, volta, decanta, sacode, vira poeira. E eis que estamos agora todos gritando, meio que oprimindo e sendo oprimidos, uns mais que os outros porque as estruturas continuam as mesmas, infelizmente.
Podemos pensar diferente e nos tolerar, está fora de moda, mas podemos.
Aqui na superfície, de onde nunca saímos, vamos debatendo por que a sua música é pior que a minha, destilando ódio sem abrir conversas, nos separando quando deveríamos nos unir… Berrando mais alto para não ouvir o grito alheio, seguindo com acusações sem possibilidade de meio-termo até que a "alta burguesia da cidade" não acredite na história que virão - e viram, ou protagonizaram - na TV.
Isso é o que vim dizer: podemos pensar diferente e nos tolerar, está fora de moda, mas podemos. É normal que discordemos, que um post não me caia bem, que aquela música que canto de olhos fechados seja um pesadelo para você, que alguém ame e odeie o Eric Clapton ao mesmo tempo, que eu não comente num post do qual discordo porque não preciso dar opinião toda hora, que eu resolva escrever um texto maior para expor meu ponto em vez de resumir numa frase que geraria mais engajamento, porém mais brigas.
É oficial: virei uma tiazona, isso de paz e amor, de aceitar o diferente, é muito hippie, final dos 1960, anos 1970. E eu nem tinha nascido.
…
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Eu e o que escrevo
Textos, indicações e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista graduada pela Unesp, fissurada em ler e escrever desde pequeninha. Trabalho hoje com branding pessoal e posicionamento digital, sempre atrelando a comunicação a novos moldes de carreira e felicidade feminina. Na prática, além de produzir conteúdo, dou palestras, treinamentos e cursos para empresas.
Tenho pós-graduação em Mkt Político na USP e faço em Psicologia na era digital na PUC. Cursei temas variados, como Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai.
Trabalhei em grandes veículos de imprensa por mais de 17 anos até começar a ensinar e mentorar profissionais. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada.
Para dividir com mais gente a minha escrita e as minhas ideias de forma livre e um pouco mais literária, publico este Descarrego semanal, que traz reflexões e desabafos sobre questões contemporâneas que me afligem ou acolhem.
Nas redes sociais, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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