Descarrego #57 | Não vai passar, vai mudar
O que podemos fazer na condição de Geração da Transição (mesmo que odiemos a incerteza do aqui-agora)
Tudo passa?
Não, tudo não passa, tudo muda.
Se simplesmente passasse e tivéssemos certeza do fim, seria bem mais fácil lidar com os desconfortos atuais. Mas, como no fundo sabemos que por "passar" queremos dizer "mudar", nos preocupamos com o que vem a seguir e entramos em estado ansioso a cada novo evento. Ansioso e depressivo, como estudos apontam e já comentei em textos anteriores.
Poucas coisas são mais doloridas para o ser humano que o imprevisível. Tem umas pesquisas clássicas em comportamento mostrando que a gente prefere saber que vai perder do que ficar na incerteza, mesmo com chance de sair ganhando. É isso mesmo: odiamos tanto a incerteza que preferimos uma opção pior, mas certeira. Uma tendência déspota a querer controlar o futuro...
Quando a realidade vem e arrebata com um combo de novos cenários climáticos, tecnológicos e sociais que nos tira o tapete, nos sentimos em extremo desconforto. Aquele de estar à deriva, enquanto nos apegamos ao autoengano coletivo de que tudo vai passar - mesmo cientes, como indivíduos e sociedade de que, não, não vai.
Já foi, inclusive.
Poucas coisas são mais doloridas para o ser humano que o imprevisível. Temos uma tendência déspota a querer controlar o futuro...
O clima do planeta já mudou, está mudando e vai ser muito diferente em uma, duas décadas. A tecnologia transformou e vai transformar as nossas vidas ainda mais. A sociedade já tem abismos e tende a se tornar mais desigual e polarizada. Muitos empregos já sumiram, e o trabalho, nos moldes que conhecemos, em algum tempo não estará entre nós.
Parece, mas nada disso é mensagem do apocalipse.
Simplesmente trago a constatação que você mesmo já fez, ainda que chacoalhe a cabeça rápido em negação para esquecer a avalanche de mudanças que vira-e-mexe toma o noticiário, as pesquisas e a sua mente.
Por sermos as pessoas que estão vivenciando a antiga forma de estar neste planeta e o início de uma outra radicalmente nova, somos chamados de "geração de transição", termo cunhado pela futurista Amy Webb.
Na boa, precisava ser tudo junto bem na nossa vez? Pelo visto, sim…
Tem sido exaustivo acompanhar a transição de perto, tão veloz em termos históricos e em câmera lenta, aos solavancos, para os padrões das nossas pequenas existências. Estamos amedrontados, exauridos, loucos para fingir que nada disso nos atinge e fugir para Pasárgada - mas parece que o clima lá anda pesado também, e nem somos amigos do rei.
Ah, a gente pode reclamar um minutinho, vai? Anormal seria insistir que a "a vida vai melhorar" todo santo dia… OK cansar de “cantar forte, cantar alto” vez ou outra para cair na real antes de levantar - também na real.
É exaustivo acompanhar a transição de perto, tão veloz em termos históricos e em câmera lenta para os padrões das nossas pequenas existências.
É bom, é preciso ser otimista hoje, quiçá mais do que antes.
Mas, na minha opinião, só se for para vislumbrar maneiras de lidar com a mudança, com a transição que já está em curso em uma dezenas de esferas das nossas vidas. Ser otimista para a geração de transição tem mais a ver com encarar o que já foi, sobreviver e ser solidário ao que "está sendo" e tentar ir contra o nosso pavor natural com o porvir, com o incerto.
Vai piorar.
Vai melhorar.
Não sabemos exatamente o quê. Nem como. Só que vai mudar.
Melhor e pior são conceitos subjetivos, se a gente pensar bem, porque são calcados na nossa experiência até então.
A galera de 40, 50 pra mais tende a olhar para o combo de alterações mundiais e desanimar ou se apavorar. Tanta coisa parece insana, e quente, muito quente - não no sentido sexy do termo. Para os mais novos, a transição pode soar mais suave, mais palatável e possível de ser assimilada. Para todos, porém, ela é inexorável.
Encarar, eis o passo número um para diminuir a dor da incerteza, o que costumo chamar de "sensação de pisar em placas tectônicas".
Não é um achismo, está na literatura futurista, principalmente nos estudos sobre pensamento de futuros episódico, ou PFE, aquele que nos estimula a imaginar futuros para possivelmente encarar situações reais como mais facilidade. As pesquisas na área sugerem que projetar cenários, principalmente os que pareçam absurdos e irreais, incluindo situações da própria vida, prepara as pessoas quando o pior (um pior parecido com o imaginado) acontece. Elas ganham confiança e calma para lidar com a dor. Essa técnica de imaginação costuma ser feita com viagens mentais dez anos para frente.
Talvez mais preparados para considerar as distopias menos distópicas, sintamos menos incerteza e, então, a clássica dor de "não saber" seja amenizada. Um band-aid mental interessante, mas também uma forma de tomarmos providências com relação ao que parecer mais provável para os especialistas em cada área e/ou para a maioria.
Não dá muito menos medo do futuro quando pensamos que existem soluções e atitudes que podemos tomar?
Se sabemos hoje do consenso de que as cidades-esponja são boas ideias para mitigar o aquecimento global e outros problemas ligados a eventos extremos, "basta" que haja vontade política - e orçamento, e pressão e uma série de ações que não cabe listar - porque basta começar a colocar a ideia em prática.
Não dá muito menos medo do futuro quando pensamos que existem soluções e atitudes que podemos tomar?
Esse é um exemplo dentre muitos em cada uma das grandes áreas de transição que estamos vivendo. Encarar o problema, projetar, estudar, buscar soluções e começar a aplicá-las considerando os cenários mais prováveis. Mais do que isso, só deus, né? Dentro do que é humanamente possível, nos apegar a esse combo de atitudes parece bem razoável, e se configura como otimismo, na minha visão. Só não é o otimismo saudosista/mágico do "tudo vai passar".
É o otimismo do "tudo vai mudar", um otimismo esperançoso de mangas arregaçadas. Um otimismo de "a gente gosta de viver e precisa começar hoje a prestar atenção aos sinais que estão vindo até nós".
Suspiros, né? Não é fácil mesmo fazer parte dessa megageração, é como sofrer de labirintite crônica!
É como se estivéssemos sofrendo de labirintite coletiva crônica, mas a negação não vai barrar as vertigens do clima nem impedir que corporações de tecnologia tentem nos desumanizar.
Mas a negação não vai barrar as vertigens nem impedir que o céu desabe sobre nós, como desabou no Rio Grande do Sul, nos pegando nem tão desprevenidos assim - digo isso com pesar. Um oba-oba tecnológico tampouco vai barrar que inteligências artificiais criadas por megacorporações desumanas desumanizem algumas das nossas experiências.
Se negacionismo e alienação funcionassem, o Brasil estaria já estaria a salvo, e não cambaleando em tantas áreas.
Já que estamos aqui, quem sabe devamos aproveitar o chega-prá-lá de 2024 para reaprender a nos equilibrar diante do que está posto, para então seguir em frente?!
Vejo tanta gente, tanta mesmo, desgostosa, amedrontada e saturada com os seus trabalhos e os modos de vida atuais, que acho urgente nos reprogramar internamente para encarar a realidade, a pessoal e a coletiva. Saber da nossa tendência a detestar a dúvida e tentar olhar para os futuros prováveis com um olhar curioso, em vez de míope ou puramente pessimista.
O que dá pra fazer desde agora? Como posso me encaixar? O que já mudou e pronto, tenho que aceitar? O que como sociedade a gente precisa mudar? O que eu de fato posso fazer, está ao meu alcance hoje?
Não falamos do otimismo saudosista/mágico do "tudo vai passar". Mas do otimismo do "tudo vai mudar", um otimismo esperançoso de mangas arregaçadas.
Perguntas difíceis e fundamentais que nos tiram das nuvens, mas também instáveis placas tectônicas, e nos situam com os dois pés no chão. Nesse solo, pisa o otimismo possível para a nossa turma. E esse solo é fértil; só não brota nada nele se não plantarmos as sementes.
…
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Do meu repertório para o seu
Sobre o livro “Imaginável” e as distopias (só clicar)
Eu e o que escrevo
Textos, indicações e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista graduada pela Unesp, fissurada em ler e escrever desde pequeninha. Trabalho hoje com branding pessoal e posicionamento digital, sempre atrelando a comunicação a novos moldes de carreira e felicidade feminina. Na prática, além de produzir conteúdo, dou palestras, treinamentos e cursos para empresas.
Tenho pós-graduação em Mkt Político na USP e faço em Psicologia na era digital na PUC. Cursei temas variados, como Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai.
Trabalhei em grandes veículos de imprensa por mais de 17 anos até começar a ensinar e mentorar profissionais. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada.
Para dividir com mais gente a minha escrita e as minhas ideias de forma livre e um pouco mais literária, publico este Descarrego semanal, que traz reflexões e desabafos sobre questões contemporâneas que me afligem ou acolhem.
Nas redes sociais, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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