Você não é empreendedora porque quer.
Possivelmente, você nem é uma empreendedora.
É apenas uma trabalhadora que se cansou, sentiu os danos do trabalho precarizado ou ainda decidiu seguir sonhos, depois de tanto ouvir que era possível e desejável depositar sua felicidade na esfera profissional.
Não me leve a mal, estou aí nesse miolo, acreditando que sonhos são possíveis. Ei, vamos realizar os que podemos!
Mas não é bem uma opção como gostamos de acreditar.
Empreender é um modo de vida contemporâneo difícil de escapar.
Será saudável rotular a si mesma como uma incansável empreendedora - acrescendo aí N rótulos, formações, painéis participados e outros atributos importantes na famigerada "minibio" - como se fosse uma missão abnegada e igualitariamente possível para qualquer um?
Será saudável viver em constante comparação e competição, ainda que quase todo " empreendedor" suba ao palco pregando o oposto?
E mais: será saudável viver de um jeito e pregar outro? Por quanto tempo? Por que mesmo?!
Ah, o seu porquê (aquele que a galera ama citar, do Simon Sinek)... Ele esmaece na labuta, muda e às vezes muda radicalmente mesmo, sai do trabalho e volta para casa.
Qual a sua "casa"?
Hoje vim questionar
Vim, na verdade, também pontuar que talvez estar nessa posição seja "apenas" o único jeito que a sociedade nos tem oferecido de (sobre)viver. Arregaçar as mangas e forjar para nós mesmas os direitos que outrora foram garantia legítima. E sorrir para a foto.
Empreendedores X empreendedores
Há, claro, os empreendedores natos. Aqueles que desde sempre parecem ter na veia uma série de ideias a serem tiradas do papel e que têm fôlego, cara de pau e élan para fazê-lo de novo e de novo. Esses, provavelmente, conseguem se recuperar mais rapidamente das derrotas inerentes ao trabalho solo e sem garantias. Retroalimentam seu espírito com mais ideias de viabilização, novas pessoas a serem contatadas e fôlego recobrado para tentar outra vez.
Não somos todos iguais.
Não somos, não, todos empreendedores, empreendedoras.
Somos obrigadas a nos tornar.
Tem a ver com como as coisas foram se configurando no universo do trabalho de algumas décadas para cá, especialmente na última. Temos sido empurradas ladeira abaixo se não estivermos mais atentas a cada passo profissional, se não tomarmos as rédeas da nossa imagem - e aqui falo dos conceitos de branding pessoal, gestão de si mesmo e da própria reputação.
Não é uma opção. Já foi, não é mais.
Opcional é a quantidade de exibição pessoal a que vai se prestar. Opcional é fazer desse novo modelo de vida um martírio a ser motivo de martírio diário. Opcional também é se chamar de empreendedora e romantizar a ideia.
Oba-oba?
A adaptação às atuais configurações laborais parece mais cruel do que em outros tempos, e muito provavelmente é, porque nos pegou a muitas de nós desprevenidas, com crenças sobre trabalho e longevidade que não cabem mais no universo corporativo e não se confirmam com AIs, computadores quânticos e tantas tecnologias disruptivas.
Um arrebatamento capaz de causar depressão e ansiedade, seja como transtornos seja como sentimentos temporários, em proporções sem precedentes captadas por inúmeras pesquisas mundo afora.
E aí vem a turma dizer que, oba, somos empreendedores...? Não é bem "oba"; não para pessoas com bons ganhos do empreendedorismo 2024 e muito menos para subempregados ganhos por produtividade que mal podem pagar o almoço (história com a mesma base neoliberal, mas que vai muito além do que trato no recorte deste texto).
Estamos, eu e talvez você, aprendendo a empreender porque essa é uma HABILIDADE essencial nos nossos tempos, assim como fazer a GESTÃO da marca pessoal, interagir bem com TECNOLOGIA e aumentar a capacidade de ADAPTAÇÃO. São skills, para usar o corporativês, que estamos desenvolvendo a fórceps porque queremos e merecemos prosperar diante das novas condições.
Condições essas que não mostram sinal de mudança tão cedo, então, lá vamos nós vestir a carapuça de empreendedoras das próprias carreiras e vidas para não virar lendas urbanas no darwinismo social capitalista.
Nada disso é dito com especial pessimismo. Vim apenas colocar os pingos nos is e estabelecer uma conexão com você que se sente deslocada, desencaixada como costumo dizer, diante da onda de autoempreendedorismo e gestão da nossa vida como se fosse uma empresa.
Por mais que muitas das minhas próprias áreas de atuação bebam nessa ideia, acho sempre honesto desnudar o que está por trás das habilidades que somos impelidos (empurrados) a desenvolver em tempo recorde.
Há um sistema, algo maior que nós, capaz de mudar a maré e nos carregar com força. É preciso saber a hora de se deixar levar por ela e a hora de criar respiros, nadando até contra a corrente.
Geralmente, venho defender, temos que dosar ambos, porque só remar contra a maré traz o enorme risco de nos deixar no mesmo lugar, ou afundar de tão exaustas.
Ler o cenário com olhar crítico não nos impede de prosperar nele. Pode fazer disso um mantra e repetir à vontade quando se sentir estranhamente adaptada. Já basta de dor e culpa por embarcar no que não concordamos integralmente: a vida segue.
Equilíbrio no paradoxo
Eu não tenho uma particular veia empreendedora. Meu tesão está no saber. Mas se eu não empreendesse - nos sentidos contemporâneos do termo, que envolvem a proatividade profissional e o próprio ato de criar negócios e oportunidades - não me sustentaria, não faria também metade das coisas legais que tenho feito profissionalmente. Ora se não são os ônus e bônus em sua eterna alternância!
Talvez esse pensamento, mezzo resignado mezzo "estamos de olho", sirva para você que também não se vê representada no mundo de culto a bilionários, empreendedores serial que fingem descansar e não ser ególatras e pregadores da performance como maior fonte de felicidade.
Não é preciso ser um fantoche acrítico para ganhar o seu quinhão.
Buscar algum sucesso, por mais paradoxal que possa soar (e ser), não significa ignorar que o mundo está cada vez mais desigual e precisamos nos movimentar contra isso. Há todo um pensamento, e consequentes ações, que tentam conciliar felicidade individual e busca por melhorias no todo.
A meu ver, se existe um empreendimento relevante a ser feito em cada pessoa/empreendedor involuntário é o do equilíbrio entre navegar neste mundo de aparências e números e voltar para o seu interior, em que dinheiro serve para proporcionar outras coisas, aquelas que de fato importam. Um mundo em que outro não é um concorrente ou um estorvo, mas um de nós.
Eu e o que escrevo
Textos, indicações e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, fissurada por ler e escrever desde pequeninha. Trabalho hoje com branding pessoal e posicionamento digital com foco na carreira, além de dar palestras, treinamentos e cursos para empresas.
Tenho pós-graduação em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai.
Trabalhei em grandes veículos de imprensa por 17 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso prática em palestras, treinamentos em empresas, colaborações e cursos.
Pra dividir com mais gente a minha escrita e as minhas ideias, faço esse Descarrego semanal, que traz reflexões e desabafos sobre questões contemporâneas que nos afligem ou acolhem.
No insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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