Nem tudo o que a gente faz precisa dar dinheiro.
Nem tudo o que a gente faz precisa dar dinheiro?
Se você embarcou pesado nos últimos dez, 20, 30 anos na ideia de "ter uma carreira bem-sucedida", assim como eu, é um desafio se convencer lá no fundo de que essa frase é verdadeira.
A coisa piorou quando entramos oficialmente na Gig Economy (a economia da informalidade, dos bicos, dos vários jobs, para quem ainda não está familiarizado, que muitas vezes é apresentada de forma romantizada).
Como estava dizendo, se você, como eu, buscou e busca um lugarzinho ao sol na esfera profissional, foi sendo convencido que a batalha não pode ser vencida só nos horários de trabalho. Foi introjetando a ideia de dar 101% ou mais. Foi entendendo que a brincadeira da Gig não aceita amadores nem especialistas sentados em suas torres de conhecimento. Foi observando que é sempre preciso mais, mais, mais - pena que sem garantia de que esse “mais” vá de fato ser O “mais” ideal.
Aqui entre nós: mesmo quando pregamos o descanso e o equilíbrio, ventilamos internamente a possibilidade de otimizar habilidades para capitalizá-las e quem sabe ter um plus de grana, reconhecimento, um plano B na manga.
Ter aquele "mais" certo.
O “mais” sem máscaras
Uns começam a se desdobrar por pura necessidade de compor renda - a maioria -, outros, graças à lavagem cerebral a que estamos sendo submetidos desde os anos 1990, tão normalizada que eu mesma nem sei dizer exatamente quando entendi que mostrar o que outras coisas que eu sabia poderia me dar mais visibilidade e dinheiro, mesmo se não fizesse parte do job description.
As promoções podem vir, os aumentos se acumularem graças à versatilidade, ao senso de urgência… Isso aconteceu comigo e, voilà, crenças reforçadas: minhas habilidades mais variadas, meu tempo e quando possível a minha alma deveriam estar a serviço de uma companhia ou um projeto.
Falo sem dedos sobre isso porque reconheço, porque me conheço, mas principalmente porque estou cansada de gente criticando esse sistema moedor de habilidades e tempo livre, mas fazendo o oposto sem mandar a real, sem expressar contradições tão naturais.
Sabemos que a pessoa trabalha tantas por dia e ela finge que é um monge, papel perfeito em casa, saúde clean…? Aqui não.
Eu e talvez você sabemos e reconhecemos os nossos paradoxos. Podemos nos ver exaustos desse modo de vida e ainda assim vibrando porque o hobby de jardinagem está começando a gerar publi na rede social.
Paradoxos, aceitemos.
Mesmo sem querer, muitos de nós aprendemos a detectar a possibilidade de fama, faturamento e produtividade em quase tudo o que fazemos.
Dar de ombros para essa coceira capitalista requer 1) a possibilidade essencial de fazê-lo; 2) a convicção que só uma decepção grave, um burn out ou alguma tomada de consciência pesada podem trazer; 3) ser um perfil diferente de pessoa mesmo.
Ler e escrever e viver
O conceito de "tempo útil" acrescenta uns quilos à necessidade de tornar as banalidades, os hobbies... enfim, o "far niente" menos "dolce".
Eu larguei os trabalhos mais amargos por um tempo, por necessidade, não desejo, e então percebi que as intersecções entre os meus doces amores eram muito intrincadas. Saquei que tudo o que amava tinha vínculo com trabalho, até porque sempre amei o trabalho. Mas naquele período eu precisava diminuir e repensar essa relação.
Há um ano achei uma brechinha.
Deixei como possibilidades financeiras aquelas que sempre foram, mas forçosamente comecei a escrever toda semana sem a menor preocupação com o que pegaria bem ou renderia louros.
Escrever faz parte do meu ofício em múltiplas camadas, no entanto, ali, naquele novo espaço, não teria o peso de trabalho. Sem pressão para crescer, ser reconhecida nem gerar renda. Foi quando criei a newsletter que batizei de Descarrego.
Minhas chefes, eu e eu mesma em suas diferentes personalidades, sabem ser megeras, então deixei claro para o mundo como seria o projeto. Eu me garanti, sabe?
Ganhei um total de zero reais com a Descarrego, me esqueci mil vezes de compartilhar para não assinantes, me repeti em temas, falei coisas impopulares, fui poética, fui dramática, fui revoltada, mudei de ideia em alguns aspectos.
Mas fiz. E fui eu, o que não tem preço.
“Mad” skills in a mad world
Agora o mercado valoriza as chamadas "mad skills", habilidades extraordinárias que praticamos em hobbies, mas entram na mira dos contratantes.
É nessa toada que talvez singelos hobbies entrem na ciranda da Gig Economy para você também. Tudo o que puder ser sugado será, e não estamos falando daquilo que você pode ter pensado.
Não julgo irresponsavelmente. Há muitas camadas a serem pensadas.
Meu maior hobby é ler, sempre foi, e hoje tenho um Clube de Repertório chamado Desencaixa calcado na importância da bagagem de cada um para a carreira. Fora que trabalho com comunicação, conteúdo, branding pessoal e, sinceramente, leio sobre esses temas antes de dormir quase toda noite! Faço porque amo e durmo bem depois.
Paradoxo? Opa! Mas por alguma razão o hobby também ser trabalho não deixou de ser leve, intuo que por ter colado na minha identidade há tanto tempo. Eu me considero sortuda por ter essa "mad skill" que jamais me dói, mas mantenho muitas leituras que nunca serão divulgadas, otimizadas.
Com escrever é similar. Escrever é trabalho quando é trabalho. É hobby quando é hobby.
E aí, vou julgar quem leva seus hobbies no crachá? Há casos e casos, só acho que eles merecem remuneração quando mudam de casinha e vão para a empresa. Penso que as pessoas deveriam poder não querer tratar seus hobbies como mais do que isso. Ter escolha.
Uma porção de “eu acho”...
Mas trago uma certeza: não levar tudo o que se faz para o CNPJ.
Eu me uso de exemplo novamente.
Tenho hobbies que não me fazem faturar, não são tão frequentes quando os anteriores e, confesso, não sou nenhuma expert neles: gosto de cozinhar, de nadar, de desenhar, de garimpar moda, de experimentar bares e restaurantes... Só não estou a fim de levar esses caras para os holofotes da Gig a não ser que precise.
Não são "mad skills”, definitivamente. São prazeres pequenos, medíocres, erráticos.
"Mad", incrível?
“Mad” é constatar que faz um ano que mantenho uma newsletter sem pretensão a não ser descarregar.
“Mad" é ter um bocado de gente que ainda assim me lê.
"Mad" é ter coragem de mostrar o que a gente sabe e gosta de fazer, mesmo que a recompensa não seja óbvia.
"Mad" é ter senso crítico com o entorno, mas ainda assim sorrir e saber viver.
Eu e o que escrevo
Textos, indicações e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, fissurada por ler e escrever desde pequeninha. Trabalho hoje com branding pessoal e transição de carreira, em palestras, cursos e na comunidade/escola Desencaixa Clube, voltada para quem curte conexões reais, ampliação de repertório e aprendizagem contínua.
Tenho pós-graduação em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai.
Trabalhei em grandes veículos de imprensa por 17 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso prática em palestras, treinamentos em empresas, colaborações e cursos.
Pra dividir com mais gente a minha escrita e as minhas ideias, faço esse Descarrego semanal, que traz reflexões e desabafos sobre questões contemporâneas que nos afligem ou acolhem.
No insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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