Descarrego #4 | BBB e o tempo da (in)delicadeza
Nem precisa ver o reality pra entender...
Olha…
Eu tinha uma newsletter prontinha, mas vi as notícias e deu no texto a seguir. Conectei com um livro que estou finalizando - indico a seguir, claro - e com o que ando sentindo e tentando a duras penas vivenciar: ser mais gentil comigo mesma, com meu entorno, porque sempre, sempre acreditei que é assim que a gente começa a mudar o mundo.
Pode não ser pra hoje, mas para o porvir.
Se a delicadeza e a capacidade de impactar e emocionar puderem ser um bom legado, eu gostaria de deixar. Pretensão? Que seja, é com ela que tudo começa.
Espero que esse Descarrego te caia bem. Me conta?
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Descarrego #4 | BBB e o tempo da (in)delicadeza
O espetáculo do abuso psicológico, assim como do físico, é duro de ver.
Nos filmes conseguimos bem, nos anestesiamos com tantos anos submetidos à normalização da violência hollywoodiana. Conseguimos nos afastar e nos convencer de que é de mentira, é entretenimento e não nos afeta. Mas quando é real, pra valer, ao vivo e sem controle remoto para recuperar o fôlego… dói. Embaraça. Escancara a sensação de impotência.
Estou falando do BBB e você sabe por quê. Mesmo não assistindo ao maior reality show do Brasil todo dia, foi impactada de alguma forma pela sua estreia. Todos somos: está nas redes e nas línguas das pessoas.
Eu não assisto quase a televisão, não tenho o hábito, mas acompanho tudo, até porque esse tipo de programa que ainda toca as massas diz muito sobre os nossos tempos e movimentos. É a minha visão das coisas.
Esse tipo de programa, como o BBB, que ainda toca as massas diz muito sobre os nossos tempos e movimentos. Sobre a nossa sede de identificação e a união via ódios comuns.
Como jornalista, lá no meus tempos de Estadão e Jornal da Tarde, cobri realities e novelas e cultura pop ou erudita, mais popular. Fui ao Rio cobrir finais de Big Brother, repercuti fatos, entendi muito da nossa sede por identificação e da união via ódios comuns nesse percurso. Eram outros tempos, que normalizavam ainda mais a dominação masculina e davam uma casca aparentemente mais leve às desavenças que víamos na tela.
Essa casca rachou, ainda bem que rachou.
Hoje, diante dos empurrões, das frases grosseiras e da incapacidade da vítima de entender sua posição e reagir, o Brasil todo - não, infelizmente é só uma bolha, uma parte - reage e grita. O que mudou é que pela primeira vez a própria emissora deu "um toque", reagiu junto. Sinal dos tempos. Sinal de que os berros feministas que chamaram de raivosos e exagerados por décadas se mostraram ouvidos. Tem um tempo das coisas, e estamos nesse tempo - se soubermos aproveitar e equilibrar seus abissais paradoxos.
Tem um tempo das coisas, e estamos nesse tempo - se soubermos aproveitar e equilibrar seus abissais paradoxos.
É tempo de abrir os sentidos, as emoções e o raciocínio numa só janela, ampla, e deixar os novos ventos entrarem.
De dar nome aos bois - às vezes bem literalmente.
De ajudar e acolher as vítimas, porque elas muitas vezes parecem e são fortes, mas têm a fragilidade de quem vive sob a égide do machismo.
Tempo de salientar as diferenças para encontrar as igualdades e voltarmos a nos espantar diante do que merece espanto e escárnio.
Se precisamos de um reality show ultracapitalista e lacrador para esse tempo acelerar, que seja. Estamos imbuídas até o pescoço no sistema e é dentro dele mesmo que precisamos escalar o poço e ver a luz - estou ciente de quão contestável é esse argumento, mas ando me apegando a ele; perdoe por me permitir acreditar em revoluções micro, em rupturas que mais parecem pequenas rachaduras, veias etéreas nas paredes densas do sistemão. Às vezes a gente só consegue andar de bicicleta com rodinhas.
Bom, minha amiga…
Queria fazer um texto suave para você, a proposta em geral é essa, mas é também trazer um Descarrego. Creio que encontrar a suavidade no mundo da aridez é uma grande missão. Mas não é fingindo que não há aridez que chegaremos ao oásis.
Encontrar a suavidade no mundo da aridez é uma grande missão. Mas não é fingindo que não há aridez que chegaremos ao oásis.
Citei a desolação pela violência simbólica e psicológica - e, pelo pouco que espiei, também física - em um programa de TV.
Posso incluir o silêncio ensurdecedor masculino diante das denúncias recentes de estupro contra o jogador brasileiro famoso - e não estou falando só de rede social, mas de indignação ao vivo e a cores.
E mal consigo digitar ao me lembrar das cenas do genocídio Yanomami. Brasil, 2023. Quem não chorou ao visualizar aqueles corpos, aquela tristeza profunda, aquelas pessoas sendo tratadas como menos do que animais e plantas, já morreu por dentro. Apodreceu, ressecou, pode enterrar, cremar. É vil, é cruel, é embaraçoso. É o embaraço de ser brasileiro, de ser humano vendo nossos irmãos contaminados, desnutridos, abandonados aos algozes. Sim, Brasil, 2023.
As pautas são duras; a vida pode ser dura. Eu sei que você sabe.
Sei também que pode ser indigesto ler isso agora de manhã. Mas às vezes o desconforto estomacal nos conta sobre uma doença, algo oculto para o mal ou para o bem - falei disso na newsletter 1, lembra? A doença coletiva é a normalização do sofrimento alheio. Estamos dopados enquanto o Grande Irmão nos assiste e dá tapinhas na barriga, flatulento e satisfeito.
A doença coletiva é a normalização do sofrimento alheio. Estamos dopados enquanto o Grande Irmão nos assiste e dá tapinhas na barriga, flatulento e satisfeito.
Despertar e dolorosamente digerir é parte do processo sem volta de nunca mais minimizar a dor do outro. Dar um passo atrás e olhar uma vez mais, corrigindo a miopia galopante e nos sensibilizando em cada poro para as mazelas que o mundo nos apresenta.
Seja um casal bonitão e disfuncional de reality show, com toda a audiência e o dinheiro que sua discórdia fomenta; seja um holocausto que deixamos acontecer debaixo do nosso nariz e, constrangidos, forjamos surpresa porque entre saber e ver (sentir) há um abismo de sentimentos.
Sentimos vergonha pessoal, alheia e coletiva diante de todos os episódios, que se conectam por um fio de desleixo com o coletivo que vem sendo costurado pelo menos desde os finais dos anos 1970, com as ascensão do solipsismo, o cúmulo do egoísmo, como comportamento louvável.
Sentimos vergonha pessoal, alheia e coletiva diante de todos esses episódios, conectados por um fio de desleixo e solipsismo.
Incautos, esquecemos que estamos ligados e que os atos mais egoístas são também coletivos, e vice-versa. A rede invisível que nos conecta tem suor, sangue, lágrimas, mas também terra, ar, água, fogo e o indelével espírito do tempo - que não se explica muito, mas se enxerga sem lupa.
Nosso espírito do tempo pede a ressensibilização individual para que ela chegue ao coletivo. Não é sobre sofrer o dia todo, se culpar e evitar curtir a vida porque tem alguém infeliz na outra ponta. A felicidade de cada um não precisa subtrair a do todo.
É sobre ser feliz e tentar levar felicidade também.
É sobre estar vivo de fato.
Comecemos olhando ao redor e genuinamente perguntando: "Está tudo bem com você?". Olhando no olho, e ouvindo, e trocando, e agradecendo.
Sigamos nos respeitando.
Recomecemos ao cair, porque os tropeços serão muitos, já que as pedras parecem brotar no meio do caminho.
Tentemos não nos calar diante da injustiça.
Reconsiderar, a duríssimas penas, aquela visão que formamos lá atrás sabe-se-lá-por-quê.
A suavidade, lembra? O tempo da delicadeza, como diz Chico, pode ser o nosso tempo pessoal, a despeito do Zeitgeist cada vez mais enrijecido e individualista desde que o “umbigocentrismo” virou mainstream, nas mãos duras da Dama de Ferro, Reagan e seus seguidores.
Esse mesmo espírito do tempo tem o seu lado B, é preciso esperançar. Propício a questionamentos e convidativo para vozes que não tinham microfones, consegue ser fluido, veloz, ruidoso e surpreendente quando usado pelos atores certos - todos nós em potencial.
Com empenho e paciência, o mesmo tempo da indelicadeza pode virar o da suavidade, do apoio e do trato carinhoso - o tempo do amor.
Ele começa nesse tempo-espaço chamado "a gente", na nossa casa, com os nossos. E aí, gosto de acreditar, a coisa se espalha e contamina, um a um, com um pouco de solidariedade e bondade que nos arremessam para longe do torpor egoísta.
Com empenho e paciência, o mesmo tempo da indelicadeza pode virar o da suavidade, do apoio e do trato carinhoso - o tempo do amor.
Amor, gentileza, cuidado, conexão, doação, empatia, afeto. Essas coisas bregas, essas coisas lindas. Essas coisas que nos fazem querer bem a garota do reality, a vítima na Espanha, nossos indígenas tão sofridos, você mesma, eu e o mundo.
Como jornalista com tantas coberturas duras nas costas (não essas que mencionei nesse texto, mas as de miséria, acidentes, mortes e afins), costumo ter um pensamento recorrente que deixo aqui, de coração aberto:
As notícias são ruins, nós não precisamos ser.
As notícias são ruins, nós não precisamos ser.
Quer ouvir esse texto?
Eu leio o texto pra você que gosta de escutar no meu tom, ou que prefere não ler, ou que não pode, ou que não quer.
Está aí, com gentileza...
Tempos (in)delicados no Repertório
UM LIVRO
A obra que mencionei no início é o excelente "O Naufrágio das Civilizações", de Amin Maalouf. Poucas vezes encontrei um livro que amarrasse tão bem acontecimentos tão distintos - e esse o faz partindo da mal compreendida história recente de países árabes para se conectar com o Neoliberalismo e outros acontecimentos do fatídico ano de 1979, até chegar ao que formou nosso espírito do tempo atual e os problemas que enfrentamos globalmente. O olhar íntimo do jornalista traz sentimento à narrativa, aproxima, enquanto traz reflexões que muitas vezes desafiam o senso comum.
UMA SÉRIE
Não me canso de indicar I May Destroy You, série premiada disponível na HBO. O tema pode dar gatilhos - aliás, impossível que não dê nas mulheres, é prudente avisar. Fala de consentimento e portanto de estupro, amizade, superação, tanta coisa de um jeito moderno e inebriante. A atmosfera visual contribui para incrementar esses humores, torna-se quase uma personagem pautando as cores, as náuseas, as alegrias e as descobertas da trajetória pós-abuso da protagonista, a espetacular Michaela Coel, atriz e escritora da série.
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Reticências
"Os homens têm medo que as mulheres riam deles; as mulheres têm medo que os homens as matem." Margaret Atwood
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"Terá agido por habilidade política ou magnanimidade? A verdade é que pouco importa. Enganamo-nos ao pôr em extremos opostos os interesses e os princípios. Às vezes, estes coincidem. A magnanimidade pode ser uma habilidade, e a mesquinharia uma inaptidão. Nosso mundo cínico rejeita admiti-lo, mas a História está repleta de exemplos que o confirmam." Amin Maalouf
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Eu e o que escrevo
Textos, indicações de repertório e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, especialista em branding pessoal e carreira multipotencial, tenho pós em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai. Trabalhei em grandes veículos de imprensa por mais de 17 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso na prática no projeto Desencaixa, uma escola que mescla formatos e disciplinas com um TMJ constante! Pra dividir com mais gente a minha escrita e os meus desencaixes, faço esse Descarrego semanal! E no insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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