Engraçado como cada semana bate de um jeito, né?
Desde que me propus a fazer deste Descarrego uma reflexão mais quente, já quis escrever sobre o que está longe e o que está perto, aliás, dentro.
Falei sobre nossos vieses bélicos, que servem para o dia a dia e para o conflito em Israel. Depois quis trazer um olhar sobre a constante cópia nas redes sociais e agora me vejo fugindo desse ruidoso mundo lá de fora para ouvir uma mensagem importante, dessas que só quem masterizou a arte de viver pode dar.
O texto de hoje faz uma homenagem e traz uma lição. É íntima, mas acredito que valha para você.
Me diz se sim. Beijos, Bru
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Descarrego #36 | A lição da Dona P.
Às vezes é preciso uma sacudida para lembrar quão desimportantes são as coisas com as quais nos condicionamos a preencher os dias.
As notícias quentíssimas, os posts-ostentação, os modismos, os termos do momento para novas angústias, as picuinhas pessoais, as comparações às quais nos submetemos costumeiramente rolando feeds até enrijecer os dedos e as ideias. Frugais, são frugais, embora nos esqueçamos disso na roda viva cotidiana.
Faz uns dias que não consigo me enredar nessa toada hiperconectada. Parece bom, mas gera desconforto e preocupação para quem trabalha com redes sociais e temas atuais. Uma sensação estranha de falta de significado que vai e vem. Talvez você tenha sentido algo semelhante quando levou um chega-pra-lá da vida...
Não mencionei qual foi o meu ainda.
Então, a Dona P. se foi
É que a Dona P. morreu.
Preservo o nome por não me sentir no direito de roubar a grandeza da sua história para um texto assinado por mim, que mal a conhecia.
Dona P. é a mãe de uma pessoa que eu amo, a sogra de uma que amo também. Eu não tinha contato com ela, mas me sentia próxima pelas histórias bonitas que a cercavam. Sem tentar protagonizar nenhuma, muito pelo contrário, foi a personagem mais marcante na vida de mais gente do que se imagina.
Eu estive no velório dela, eu vi, ouvi, senti - ninguém me contou.
Parecia uma missa lotada e triste porém esperançosa, por todo lado gente se abraçando e fazendo questão de prestar a última homenagem à Dona P. Parentes, muitos; amigos, tantos; vizinhos e eu, ali reunidos para homenageá-la e sorver a derradeira inspiração dela.
Faça o bem. Acolha, conforte. Deixe um rastro de benfeitorias, não se preocupe com grandeza e aplauso, só faça. Cada pequeno gesto, ao longo de uma vida inteira, é capaz de virar um movimento, de passar de geração em geração.
Tirei a ideia acima das belas histórias que ouvi sobre a Dona P.
Amou e foi amada. Trabalhou muito e com esmero.
Além dos filhos nascidos da barriga e criados para não baixar a cabeça diante de injustiças, também adotou, sempre ensinando a importância de ser forte e gentil (não, não são adjetivos antagônicos).
Recebeu em casa pessoas doentes para poder cuidar, porque sim, porque quis.
Cozinhou e festejou, fez da vida de quem estava ao redor uma celebração sempre que pôde e pediu que a festa na sua casa não cessasse quando ela mudasse de plano.
Seu carisma não estava no ter. Ela espalhava sabedoria, acolhimento, cuidado. Sei disso não só pelos depoimentos que ouvi no velório, mas porque uma das pessoas que amo, como comentei, foi acolhida por Dona P. como filha.
Bem, aos 72 anos a Dona P. partiu. Sua lição ficou.
Entende agora por que a minha rotina deu pause e a vida me obrigou a olhar para dentro?
O desencaixe nem sempre é ruidoso
Tenho uma comunidade que se chama Desencaixa e defendo esse modo de viver, desencaixado, que desafie aqui e acolá os padrões para que tenhamos uma vida com mais confiança, significado, felicidade. Muitas vezes, esse desencaixe é entendido como rebeldia, ativismo, cartazes e vozes alteradas. Não, não necessariamente.
Penso que existe também o jeito Dona P. de estar absolutamente fora dos encaixes mundanos. Ousar viver uma vida agregadora, ousar fazer o bem apenas por fazer, ousar ser gentil, ousar acolher. São ousadias, ah são, porque contrariam a lógica individualista da sociedade.
Aprendi, ou recordei, o desencaixe mais bonito ao contemplar a partida da Dona P., sua família bonita e unida, o amor e a gratidão de tantos que conviveram com ela. Sabe, me fez dar mais um voto de confiança para a humanidade…
Ser desencaixado hoje talvez seja ter a coragem de ser profundamente humano e doar um pouco do seu tempo e da sua atenção para o outro “só” por achar que é a escolha certa - e aqui remeto à máxima de Henry David Thoreau de que sempre trocamos por tempo de vida o que nos dispomos a fazer.
A vida simples
Por acaso ou não, a notícia da partida da Dona P. me pegou quando estava lendo sobre a vida e a obra de Thoreau e sua convicção radical de que o melhor aproveitamento da existência humana está no contato com a natureza, em ter pouco e sentir muito, em sorver o melhor da simplicidade.
Contraintuitivo lá no século XIX e ainda hoje: achamos que acumulando coisas, títulos, números, pessoas, só assim deixamos um legado e somos felizes. É uma busca falaciosa, Thoreau explicou por meio de obras como o ensaio Desobediência Civil (1849) e Walden (1854).
Dona P. mostrou em cada gesto até o dia 25 de outubro de 2023.
A lição que mais me pegou: mesmo com pouco dá para fazer muito, tudo, tudo o que importa, se a alma não for pequena.
Escrevi este texto para me lembrar e te lembrar de não apequenar a alma. Obrigada, Dona P. por passar por essa Terra, cruzar a minha vida de forma improvável e indireta, mas forte o suficiente para ensinar que a mais desejável das contracorrentes é a gentileza.
Quer ouvir esse texto?
O texto acima narrado por mim, pra vc que quer entender as vírgulas, os pontos e as ideias ainda mais do meu jeito <3 Tá aqui, com amor:
Eu e o que escrevo
Textos, indicações de repertório e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, fissurada por ler e escrever desde pequeninha. Trabalho hoje com branding pessoal e transição de carreira, em palestras, cursos e na comunidade/escola Desencaixa Clube, voltada para quem curte conexões reais, ampliação de repertório e aprendizagem contínua.
Tenho pós-graduação em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai.
Trabalhei em grandes veículos de imprensa por quase 20 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso prática em palestras, treinamentos em empresas, colaborações e cursos.
Pra dividir com mais gente a minha escrita e as minhas ideias, faço esse Descarrego semanal, que traz reflexões e desabafos sobre questões contemporâneas que nos afligem ou acolhem.
No insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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Amei o descarrego de hoje, e a Dona P. me lembra demais a minha avó, cujo funeral foi um tributo tão imenso que chegou a me surpreender, mas um ritual à altura da marca que ela deixou no mundo.