Sabe… hoje eu só queria dividir uma reflexão sobre as verdades e as mentiras que, de tão normalizadas, passam pelos nossos olhos como poeira enquanto ficamos vidrados na rede social.
Não é novo, mas ainda é.
Engraçado como a influência mudou tanto, mas alguns dos seus vícios só se ancoraram ainda mais, embora com novo verniz.
E, nós, mulheres, continuamos sendo conduzidas a nos achar inadequadas a cada garfada que damos, ou nos recusamos a dar.
Bom apetite.
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Descarrego #10 | A garfada que dói
Num daqueles momentos acéfalos pelo Instagram dia desses parei numa blogueira bem famosa supostamente se preparando um evento tipo semana de moda.
Maquiadíssima, saltão, pele radiante, fundo impecável num hotel chique, com um lindo prato de espaguete à frente ou no colo. Claro, havia uma quantidade perfeita da massa enroscada delicadamente no garfo bem focado na câmera, mas em foto nenhuma o garfo ia para lá... para a boca dela.
Esse estilo de foto já é clichê dos ensaios de moda, sei que você já viu mil versões lindas e bem mais ousadas até. Tem a modelo meio raivosa se lambuzando no pomodoro, a outra cheia de tesão na bolonhesa e por aí vai. Acho belo, amante de moda e fotografia que sou. Gosto das imagens, que nascem daquela leva de construções então feitas para chocar, causar estranhamento, paradoxos, com luz estourada, maquiagens fortes, ângulos improváveis. Que beleza!
Porém, confesso que me encanto ainda mais pelo espaguete, meu prato preferido da vida.
A diferença talvez seja que eu levo o garfo à boca, e como!
Em todas as vezes me esqueço de fotografar a altamente sexy cena da minha pessoa devorando um espaguete suculento, preferencialmente bem fino, manchando para todo o sempre a roupa que visto. Vale cada mancha, na minha opinião.
Mas, entre uma pasta degustada e outra vista nessas fotos produzidas, andei meio cricri com algumas blogueiras, umas velhas de guerra e outras novatas que se acham desconstruídas - a turma toda simulando “se permitir” comer enquanto mantém o tanquinho intacto e uma soma de zero celulites e gorduras localizadas.
“Ai, gente, normal, meu metabolismo bom, tem chás incríveis, faço meditação, é uma esteirinha para queimar o do dia.”
Aham.
Sanduichão ali, doces mil na mesa de sobremesas, milkshake em Nova York, porção farta de fritas em Paris.
"Equilíbrio é tudo, na viagem pode". E essa gente só viaja…
Me poupa de teorizar sobre equilíbrio. Já tive muita labirintite real e metafórica em busca dele
Ah, me poupa de teorizar sobre equilíbrio que eu já tive muita crise de labirintite - real e metafórica, para tentar achar esse tal de equilíbrio na aparência, no cardápio, na rede social, na agenda...
Equilíbrio costuma ser mais parecido com pé na jaca intercalado a jejum que com um pouquinho de cada coisa e recompensas sutis - licença para generalizar grosseiramente, pois não é o que quero aprofundar, isso pode variar demais para cada um.
Meu olhar rabugento jamais será para o hi-lo alimentar, pelo contrário, sou adepta (quando consigo).
Nem é olhar para o prato alheio. Só os vazios me incomodam e sabemos que esses não são dos que viajam a lazer para a Europa.
O que incomoda… Bom, infelizmente, talvez, eu seja conhecedora demais de dentro, do início da blogosfera e também da galera da moda. A ideia de um pratão realmente devorado com alegria não cola, não pra mim.
Essa turma não está comendo aquilo e problema delas! Está com mil cirurgias modernas e procedimentos caros e bastante academia e descanso e tratamento na foto e também, por favor, problema delas!
O problema só vira nosso quando o mix das omissões cotidianas aparentemente indolores acaba nos levando a nos achar anormais
O problema só vira meu, nosso, quando o mix disso com uma omissãozinha aparentemente indolor acaba nos levando a nos achar anormais.
Donas de bumbuns com pele de casa de laranja - era esse o termo que se usava no jornalismo de beleza lááá quando comecei.
Eu mesma pesava 13 quilos (ironia, claro) e já me achava a própria casca de laranja, além de uma jaca e uma baixinha de pernas agigantadas com uma barriga cujo formato nunca seria reto à la Gisele, chapado o suficiente. Lançava mão da dieta da proteína direto, o que me fez ficar enjoada até hoje de certas preparações de ovo. Argh…
De dentro da cobertura de beleza e também como mulher e consumidora, de lá pra cá vejo que ao menos um avanço brotou: agora a gente fala mais abertamente disso, critica, questiona. Tem uma galera incrível dando as caras e botando o dedo na ferida. Mostrando que qualquer corpo é digno de admiração e amor.
Bem oportuno, até porque a modinha início de 2000, a supermagreza, nunca esteve tão em voga novamente como hoje. E a galera fingindo que nada!
Mas repara…
Dá para sacar como os padrões opressores continuam fortes, junto com uma hipersexualização feminina preocupante tomando as redes sociais. Jovenzitas e senhoras experientes, estamos de novo olhando para o espelho e achando pelo em ovo - só ovo, sem pão, pelo amor de deus, né?
Jovenzitas e senhoras experientes, estamos de novo olhando para o espelho e achando pelo em ovo - só ovo, sem pão pelo amor de deus, né?
Coitadas, essas influencers aí querem, eu creio, dar umas garfadas apaixonadas e constantes na massa, devorar a porção giga de fritas e se acabar nos chocolates todos que recebem - e são muitos!
Mas sei que no dia seguinte iriam muito tensas se sentir na obrigação de compensar com intensos exercícios e procedimentos. Mesmo milionárias e/ou incoerentes, reconheçamos aqui como mulheres: todas têm sua parcela de vítimas nessa história, ainda que nunca o saibam!
A moda, a indústria e a construção da sociedade machista tiram o garfo da boca delas e querem tirar das nossas. Ou então colocá-lo, para depois nos obrigar a reparar o dano “imenso” que causou com novos produtos e serviços.
Não me omito disso, não.
Retiraram muito garfo, colher e delícias da minha boca e ainda tenho inúmeras neuras rolando nessa cabecinha agitada aqui. Apenas fui me exaurindo de evitar tanto esse charmoso e tesudo Lúcifer chamado Carboidrato. A gente se gosta, se entende, tem um relacionamento não abusivo... bom, pera, a gente pensa nisso depois rsrs.
Apenas fui me exaurindo de evitar tanto esse charmoso e tesudo Lúcifer chamado carboidrato. A gente se gosta, se entende, tem um relacionamento não abusivo... bom, pera rsrs
Ah, também tenho um trato comigo mesma de falar a verdade.
Já me mostrei começando e parando exercício infinitas vezes. Também fazendo tratamentos no abdome. Uso botox e uns lasers eventuais no rosto, embora prefira em doses pequenas porque acho que meu trabalho requer a expressão forte. Passo, além de raiva rs, cosméticos todos os dias, no rosto e no corpo. Tenho proteínas em pó em casa, leio rótulos e calorias…
Deu pra sacar que somos parecidas, né?
Eu apenas desisti de ser uma Bruna com corpo de 17 anos tendo 40 porque amo de paixão comer e beber e poder não me culpar tanto - me livrar de um peso, pois já tenho tantos outros para carregar.
É uma escolha, eu sei dela. Mas é uma escolha que você aí já sabia, certo? Eu conto a real. É esse meu ponto.
A mentira no dia a dia e na rede social está na nossa cara de um jeito tão patético que quase faz perder o apetite.
Eu de fato sinto enjoo cada vez que vejo uma falácia dessa sendo vendida, acho desonesto, desnecessário e datado. Jamais recomendaria como uma estratégia de branding pessoal.
Certos corpos, carreiras, estilos de vida ou seja lá o que for exigem sacrifícios - faz quem quer, eu lá vou criticar quem busca aumentar a performance?! Eu mesma já me levei a extremos em diversas esferas.
Entretanto, de novo: mentir sobre isso são outros quinhentos!
Honestamente eu esperava que em 2023 estivéssemos mais vacinados contra os negacionistas da “vida como ela é”, mas pelo jeito continuamos caindo nos contos capitalistas, machistas e misóginos de sempre mascarados em novas roupagens.
As novas mentiras das redes sociais estão muitas vezes maquiadas para nos enganar e usando um pouco do próprio politicamente correto para isso
Estão maquiados para nos enganar e usando um pouco do próprio politicamente correto para isso. O sistema coopta, distorce e eventualmente apodrece as bem intencionadas tentativas de gerar linguagens honestas e saudáveis - tenho falado muito disso com amigos comunicadores.
Observa mais.
O discurso do descanso desejável, do equilibrar para ser feliz, a própria psicologia positiva e tal entram nessa corrente invertida para enganar as nada bobas aqui.
Somos espertas, mas humanas: a gente engole e nem percebe, porque soa verdadeiro, razoável, o discurso passado ali naqueles feeds caóticos, similares e infinitos.
Mesmo com tanta praia de internet do início pra hoje, ainda é preciso pisar na beiradinha e olhar o horizonte para evitar surfar nessas ondas erradas.
Tudo é feito para vender algo, tudo, inclusive os famosos desinfluencers em voga agora estão vendendo o avesso. Mostram o que não comprar para, quem sabe, induzir ao que vale a pena… Ou estão ou querem vender, admitam ou não.
Reforço que a profissão é legítima, um ganha-pão para mim também, afinal. Mas a legitimidade e a credibilidade decorrem de um jogo sincero, aberto. E infelizmente não tem sido para muita gente - vem de uma boa turma que parece SUPER ok, cool, descolada, desconstruída, bacanona, anti todas as besteiras ditas e feitas por aí.
Mas falar e fazer: coisas bem diferentes.
Citei o caso dos garfos e das mulheres porque acho simbólico o tema, curioso e triste que haja esse jogo sórdido quando tanto se fala em sororidade autoaceitação. Um dos temas mais dolorosos para nós, a ditadura da magreza ainda vigente, sendo usado de forma vil? Sim, e com carinha de “imagina, nem pensei nisso!”.
Mas esse game vale para quaisquer pessoas e muitos outros temas.
Para não nos afogar em comparação dolorida e confusão sobre a nossa autoimagem, só indo além do discurso bonito com pinta de sincero ou glamuroso ou lacrador ou correto.
Só treinando o olhar.
Pense no garfo cheio mas sempre longe da boca e como ele fere mais que faca
Olha bem ali e sente, usa o estômago, a visão, o cérebro e o coração. Pensa no garfo cheio mas sempre longe da boca e em como sem querer ele pode ferir mais do que faca.
Chupa essa manga.
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Garfadas cortantes no Repertório
UM LIVRO
É reflexão e agudeza que queremos? Posso afirmar que Falso Espelho, de Jia Tolentino, oferece isso e mais. O divertido de obras assim é que você não tem que concordar ou gostar de tudo o que ela diz, mas a autora te provoca a sair do seu conforto e repensar, principalmente o individualismo atual e seu impacto sobre a nossa autoimagem e identidade. Li quando estava criando um curso que tratava do tema e guardo ali para, talvez, reler com mais calma.
UMA SÉRIE
Costumo dizer que essa é a melhor das piores séries, porque repetitiva, previsível e meio adolescente, porém ao mesmo tempo Você, que está na quarta temporada na Netflix, prende que é uma beleza. Está indicada aqui por mostrar muitos bastidores interessantes dos nossos tempos: a hipocrisia no que se mostra e o que se é, o uso das redes sociais, as manipulações das pessoas milionárias, a misoginia, os julgamentos e os stalkers e seus perigosíssimos encantos. Eu assisti a tudo de uma vez e creio que vale como entretenimento fácil e um olhar crítico para o nosso mundo.
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Reticências
"Se você não contar a verdade sobre si mesmo, você não pode contar a verdade sobre as outras pessoas.”
Virginia Woolf
Quer hablar de jobs?
Se achar que a gente merece uma parceria, que sua marca deveria estar aqui ou nas minhas redes, responde esse e-mail ou me chama lá no inbox do Instagram, no @brufioreti. Quem sabe a gente se entende ;-)
Eu e o que escrevo
Textos, indicações de repertório e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, especialista em branding pessoal e carreira multipotencial, tenho pós em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai. Trabalhei em grandes veículos de imprensa por mais de 17 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso na prática no projeto Desencaixa, uma escola que mescla formatos e disciplinas com um TMJ constante! Pra dividir com mais gente a minha escrita e os meus desencaixes, faço esse Descarrego semanal! E no insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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