Descarrego #54 | Preciso de bem mais segundos
Os vídeos rapidíssimos começaram a me incomodar. Vim refletir por quê
Um ensopado de sete etapas feito por um bonitão sorridente, do início à mesa: 60 segundos.
A maquiagem com pinta de profissional finalizada com uma bruma de poder e glória: 32 segundos.
Prova de dez looks no espelho, com styling complexo e várias poses cool: 45 segundos.
Um vídeo caprichado em ângulos, filtros, sincronias e mix de áudios: 18 segundos.
Isso foi numa passagem pela timeline do Instagram, que era para me distrair, mas me deixou ansiosa. Por quê? - me perguntei. Praticamente só me aparecem conteúdos leves, um mix que o algoritmo me entrega do que entende que paro para ver, o clichezeiro combo de receitas, pets, looks, maquiagem e olhe lá.
Os poucos conteúdos profundos que paro para ler ali, o algoritmo não precisa me entregar porque eu mesma busco. E aí provavelmente prefiro consumir em outras plataformas, sem tanta pressa, sabendo as reais fontes por trás do que é dito.
Voltando à agonia que senti, decifrei meu incômodo rapidamente. Aquela sequência de vídeos resume horas de trabalho, preparação, edição, roteiro, contatos, compras, deslocamentos e energia vital em instantes. Em algum momento, essa gracinha apressada, que já não é mais novidade para ninguém, deixou de me encantar pela boa finalização e passou a me irritar.
A vida não é cortar 6 cenouras, 4 cebolas, uma fraldinha e amarrar um buquê garni em 5 segundos! Nem quero isso, para mim a graça de cozinhar está em desfrutar um pouco o preparo, longe de telas, pressas e outras ameaças do mundo no modo "vezes dois".
Fico pensando que se eu, considerada uma pessoa acelerada por todos que me conhecem, me aflijo com esse "fast foward" em tudo, uma pessoa mais serena deve ter vontade de jogar o celular no lixo por se sentir fora do ritmo, lenta demais!
Talvez não, talvez isso seja uma coisa minha e do meu momento (um momento que vai e volta, de repensar minhas modas e meus modos de presença digital para não me perder no caminho que traço para a minha marca pessoal).
Pensando aqui, creio que me canso mais da mesmice que da velocidade em si. Não há variação. Ou há, mas variações do mesmo tema. No fim do dia, não consigo distinguir que conteúdo era de quem. As blogueiras todas iguais, as de hoje conseguiram se pasteurizar mais que as antigas, quem diria! Cozinheiros, cervejeiros, maquiadores, cabeleireiros, stylists, professores, economistas, modelos, médicos, advogados, creators de quaisquer áreas: todos iguais, mas uns mais iguais que os outros...
Bem, eu poderia agora fazer uma ode à criatividade, porque realmente que acredito que ela é possível quando se tem estratégia, confiança e possibilidade de enfrentar a curva de aprendizado do público.
No entanto, como trabalho na área, sei que ser diferente é para poucos. As pessoas vão se copiando e resumindo seus saberes em segundos acelerados porque isso engaja mais. Simples. Estamos todos - independentemente da idade, somos uma grande geração atual - impacientes e atolados.
Falaram tanto para escolher um gancho forte, caprichar nas passagens de frame frenéticos, optar pela música que está bombando, fazer assim e assado que hoje todo mundo faz. Deu certo.
Certo?
Quem quer algo mais mastigado, profundo ou diferente, que saia das maiores redes sociais e vá ler um livro, uma newsletter ou um blog (blog?), ouvir um bom podcast (pode só ouvir, ou tem que ter vídeo?), assistir com calma a conversas maiores (YouTube, quem sabe). Vá desfrutar o que escolheu para gastar a sua preciosa atenção.
É nessa escolha, na curadoria de que conteúdos merecem mais tempo, que vejo alguma possibilidade de relevância para quem não se resume bem em poucos segundos. Ou, como eu, não quer gastar todas as horas necessárias para se apresentar em pílulas falsamente simples - acredite, produzir essas miniaturas de vídeo pode ser um trabalho imenso e maçante, mesmo com equipe grande e bem paga. Há muito mérito em quem capricha nisso, preciso reconhecer.
Qual é o seu negócio? Em que pé você está com a sua carreira? O que te interessa? Para que precisa de presença digital? O que te dá tesão?
Não posso responder por você; posso falar de mim e do que a essa altura me brilha os olhos, para quem sabe, você fazer a sua lista - que vai certamente demorar mais que 60 segundos para ser formulada, devo alertar.
Relevância, não fama.
Credibilidade, não publicidade.
Leitores e ouvintes, não likes.
Bons palcos, não todos.
Ampliar repertórios, não alienar.
Entreter, sem me perder.
Prosperidade, não aparência.
Médio e longo prazos, não apenas curto prazo.
Continuo ciente e em defesa da presença digital, mesmo com a rabugice que você notou, porque não é bem uma escolha para quem precisa ter seu trabalho visto, divulgado. Continuo a trabalhar com branding pessoal e vou continuar. Há tempos que me coloquei numa missão de tornar essa seara crítica e pensante e ajudar mais pessoas a não se distanciarem de si mesmas enquanto lapidam suas personas digitais.
Meu olhar crítico me estimula a entregar o que de fato interessa para quem já passou de 30, 40, 50, 60 anos... Propostas para nós que não nos deslumbramos facilmente e temos décadas de carreira para trás e pela frente, em moldes totalmente novos e às vezes assustadores. Eu, sinceramente, gosto de dar a mão para quem desanima do digital porque não se vê ali. Temos que nos ver, nos colocar nesses espaços, buscar as nossas maneiras de fazer, poxa!
Acho que o minimanifesto que fiz antes é um começo. Antes de desistir das mídias digitais principais, que tal experimentar novas formas nelas e em outras?
Cada vez mais percebo que o meu cansaço pode ser o seu também, e que se você leu até aqui pode precisar de tempo para maturar as ideias, fazer uma boa receita ou caprichar na maquiagem.
Sou rápida, mas não sou máquina.
Quero poder colocar apostos nas frases longas, djavanear enquanto desenvolvo uma ideia, contar uma história com pausas dramáticas. Sei lá, poder ser gente e parecer gente mesmo quando faço um vídeo supereditado ou uso asmr. Quero escrever, em vez de só falar…
É o que estou fazendo aqui, afinal.
Continuemos.
Eu e o que escrevo
Textos, indicações e erros são culpa minha mesmo, @brufioreti 🙂
Sou jornalista, fissurada por ler e escrever desde pequeninha. Trabalho hoje com branding pessoal e posicionamento digital com foco na carreira, além de dar palestras, treinamentos e cursos para empresas.
Tenho pós-graduação em Mkt Político, cursei coisas variadas, tipo Feminismo Pós-colonial, Neurociência, Psicologia da Popularidade e Positiva, Business Coaching e por aí vai.
Trabalhei em grandes veículos de imprensa por 17 anos até começar a ensinar e mentorar mulheres na seara da marca pessoal no digital e no trabalho. Adoro autodidatismo e defendo cruzar repertórios pra nos destacar e abraçar nossos "desencaixes" nesse mundo cheio de gente enquadrada. Ensino isso prática em palestras, treinamentos em empresas, colaborações e cursos.
Pra dividir com mais gente a minha escrita e as minhas ideias, faço esse Descarrego semanal, que traz reflexões e desabafos sobre questões contemporâneas que nos afligem ou acolhem.
No insta, mostro outros lados meus também, porque a gente é muito mais que o que pensa, trabalha ou diz. É o que sente e faz sentir 😉
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Resumiu o que anda incomodando por aqui tb! Perfeita como sempre nas tuas elucubrações e reflexões!
Adorei a reflexão… tenho pensado mto nisso tbm!!